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Vaga carne, de Grace Passô

Imagem: divulgação

 

As luzes se apagam e escutamos, no escuro, a gravação da voz de uma mulher. Começa a cena de Vaga Carne, com Grace Passô. Que logo aparecerá sob um foco de luz no rosto, com ela de óculos escuros. Depois veremos uma bateria musical ao lado, num palco praticamente nu, apenas com as rotundas em volta. A plateia é configurada na forma de esporão, com a relação frontal, uma à esquerda e o outra à direita. Estamos bem próximos da atriz, aliás, dentro do palco do teatro à italiana.

A voz fala de um ser que descreve as coisas e das coisas e outros seres que invade, transita e habita por um tempo. Quem invade? Seria um vírus? Um algo sem nome. Um efeito da linguagem – o inominável, para lembrar Beckett. que vai nomeando as sensações, passando de uma para outra numa velocidade entre o demorar-se um pouco e o saltar logo  adiante. De operar cortes e de dobrar/desdobrar mundos internos, superfícies e percepções de estados de coisas.

Logo em seguida, esse inominável da linguagem irá invadir e descrever a carne de uma mulher. Daí para diante seguiremos juntos, artista, espectadores e mundos visitados, arrastados por  uma sinfonia agônica e minimalista de voz e corpo, por quase 50 minutos. Um tempo que não vemos passar.  Digo que é um dos trabalhos mais instigantes de Grace Passô – em que vejo uma travessia. Dele falo em três lances breves: o do dispositivo cênico, o da técnica/poética ao modo de uma travessia e o do acontecimento e sua política.

Antes, um pouquinho sobre Grace Passô: uma atriz, performadora, diretora e escritora em destaque na cena brasileira. Que vem numa trajetória muito bonita, sublinho. Do trabalho com o diretor Anderson Aníbal, da força que irrompeu com Por Elise, no Grupo Espanca, ainda em Belo Horizonte – com as inúmeras peças que dirigiu, atuou e/ou que escreveu (Amores surdos é uma de minhas preferidas). Sem falar nas  parcerias com o diretor e filmaker Ricardo Júnior (Sarabanda, dirigido pelos dois, foi uma experiência de tomada do lugar, no caso o palco´, plateia e bastidores de um grande teatro como dispositivo cênico).   Em Vaga carne percebo que ela adensa a linguagem da Arte da Performance de um modo sem igual. Por que isso? Porque não temos um ser encarnado – nenhuma persona dramática.  Mas isso ainda é, de minha parte, pensar por uma categoria negativa. O que ela faz é uma invocação de forças e uma tessitura de sensações, numa semiótica/corporal/vocal e, acrescento, situacional. Ela atua e joga, sim, mas a força que predomina é a que performa: esse corpo e não outro – um momento que não representa.

Poderia me lembrar, aqui, da performance de Laurie Anderson, Language is a Vírus. Entretanto, literalmente é outro o corpo/continente: abaixo da linha do Equador, com tráfegos negros e turbulências. Outra  também a mídia e pulsão/desejante: tudo acontece no corpo da atriz/performadora Sim, sem comparações. Porém, de todo modo, uma modalidade virótica de linguagem. Não se sabe por onde entra, por onde sai e como se transmuta a cada momento.

O dispositivo cênico

No início, portanto, voz gravada e em seguida aparição. A opção mais determinada pelos recortes de luz somente ocorre nessa passagem em off para o aparecer da atriz/performadora. Pois o dispositivo nos coloca, artista e espectadores, no mesmo chão compartilhado. A aparição ( aqui o caso de um regime visual) cede ao convívio: que vai tomar, salvo se perco alguns detalhes, quase todo o transcorrido cênico. O que invade se refere ironicamente a nós, espectadores: esses aí que me julgam… Então, nossa presença foi denunciada e exposta. Grace Passô irá se dirigir a nós, sentará numa cadeira vazia ao lado, improvisará também, num momento, a partir de palavras que sugerimos. Habitamos uma territorialidade comum, apesar de aquele corpo está contaminado por forças outras. Contemplo, então, apesar de tão próximo.

Falam de espetáculo – essa categoria aí de um gênero de mercado e de um modo de apresentação/representação. Não é um conceito, é uma etiqueta. E depois, por influência dos estadunidenses, costumam dizer de “performance” para tudo que é presencial. Prefiro pensar em termos de cena – uma experiência que o conceito expressa. A cena como sendo o lugar de fantasmas.

Onde estaria, entretanto, o fantasma, na Arte da Performance? Mais precisamente: onde e como ele surge e aparece em Vaga carne?  Nesse caso, o fantasma é fenômeno de borda da linguagem. Que se faz entretecida nas texturas das palavras vocalizadas, das gestualidades que não são mais suportes, de um corpo, afinal, que comete seus atos diante de nós. Portanto, que não  se conclua ser a linguagem verbal  a única textura explorada e vivida pela atriz/performadora.

Ao modo de uma travessia

Algo me faz lembrar Elza Soares – por vezes me veio essa imagem. Não como inspiração, que talvez nem seja tão provável, senão a admiração que Grace Passô, como artista, teria por esta outra mulher que fez também sua travessia. Há uma voz que sai do corpo e um corpo que sai pela voz.

Então, se trata disso, quero dizer aqui: de uma artista que fez uma travessia no corpo. Daí minha insistência no caráter performativo em pauta. Não para inscrever o trabalho de Grace Passô em qualquer categoria prévia. Somente para dizer: esta mulher, que está diante de mim, ela acena do lado de lá.

Uma experiência que se dá em tempo real e em tempo composto: uma exposição de si e uma semiose que é do si como outro. As tessituras vão sendo exploradas e o corpo não é apenas descrito pela vocalização desse ser~-linguagem que invade, mas pulsa num tempo não-pulsado – no desmedido do ato.

Atravessar exige maturação ou maturidade. Seria, então, recomendável que envelhecêssemos, como sugere Nélson Rodrigues aos jovens artistas? Não diria tanto. A criança e o esquizo também estão do lado de lá – acenam muitas vezes desse lugar que é uma terceira margem. O problema reside em conseguir sustentar essa travessia enquanto ofício de uma arte. Não basta passar o tempo. Tem que ser iniciado. Porém, como alguém pode ser iniciado no mundo de hoje sem que se filie a qualquer coisa já dada? Assista Vaga Carne e poderá não saber o segredo, mas intuir as potências do atravessar que é ser atravessado.

Tenho o privilégio de ter visto Grace Passô surgir, desde que foi aluna do Curso de Teatro do Centro de Formação Artística da Fundação Clóvis Salgado, em Belo Horizonte. Uma coisa foi brotando daquele corpo, daqueles olhos, daquela boca, das palavras que pulavam para fora como bichos estranhos. Ainda assim estávamos diante de uma jovem artista que contribuía para a renovação da cena, da atuação e da dramaturgia. No entanto, algo se passou – para fazer uma trocadilho com o sobrenome artístico de Grace. Ou melhor, algo passa – para lembrar Deleuze.

Nesse trabalho solo, que é Vaga Carne, eu vejo sair pela boca a alma-corpo-continente de uma artista e mulher negra.  Pois esse vírus-linguagem que invade a carne, e por lá vaga, nos mostra não só vísceras, mas populações e derivas. Vi muitas mulheres negras – um tanto delas, para lembrar mais uma vez de Elza Soares. Mulheres sem nome.

Grace Passô mostra isso sem fazer registro identitário e discursivo – de raça ou de gênero. Se você me perguntar como esse corpo-alma de um continente de negritude e de um ser mulher aparece em Vaga Carne, eu lhe digo que não sei –  não vejo a técnica. Ainda bem, pois não saber é a liberdade que Grace Passô exercita e que me permite entrar em contato com essas forças de interioridade/exterioridade das palavras/vocalizações/gestos.

Porém, há técnicas sim. Sempre no plural. Agora posso vê-las. Por exemplo: uma extrema quietude que ganha acelerações rítmicas. A vocalização que é impulsionada pelo corpo e o corpo que reage à vocalização. A atriz/performadora não tem sossego, apesar de ter um domínio sobre o que transita – sobre o transe. A voz é percorrida pelo corpo. Sem que se efetue numa virtuose, apesar de ser um virtus. Ou se cultiva ou não se cultiva – mas não se mostra.

Um detalhe: o tempo em que a atriz/performadora demora para vasculhar no seu corpo, entre os seios, um maço de cigarros.

Vejo também nessa performance o trabalho de pesquisa corporal realizado por Kênia Dias, coreógrafa, performadora e diretora. Os tempos-ritmos, os deslocamentos a-significantes e os impulsos corporais foram tomados como muita propriedade por Grace Passô. Saliento, ainda na cena, a música ao vivo, a trilha de Ricardo Garcia e a parceria de Ricardo Alves Jr.

A trajetória e a força poética de Grace Passô mostram, até aqui, um programa pessoal de extrema dedicação que considero, por uma lado, como uma política anti-narcísica do ofício. De outro lado,  algo que se faz no extremo senso de observação do entorno – desse fora de si que é tão difícil habitar. Já vi Grace Passô em diversas cenas e situações: em nenhuma delas pediu que olhássemos para ela – dito de outro modo, mostrou o dedo que aponta a lua – em todas as vezes eu vi a lua.

Do acontecimento

Volto ao tema das texturas vocais e do jogo semiótico das palavras a-significantes e de significados que se dobram e desdobram. O que difere de muitas linhas versadas nesse exercício é que Grace Passô é tomada pela palavra – para dizer com o poeta Antônio Risério – em vez de tomar a palavra. Tomada pelo corpo-som-imagem.

Uma espectadora sugere, por convite, uma palavra: fora. Quando Grace Passô a empunha, eu vejo nesse momento todo uma terra em transe – um delírio político/barroco desse país – em que o Fora! assume tantas figuras e lugares e paisagens. Uma paisagem política passa diante de mim, porém uma paisagem contaminada pelo vírus dessa linguagem. Isso é o acontecimento: o que se efetua nos corpos mas não é um estado retido nos corpos, para pensar com Deleuze.

Grace Passô trava uma luta – pois se trata disso – dentro do acontecimento, do qual faz sua política. Não reivindica nada – não pede nossa aquiescência para esse ou aquele detalhe. A cena é, nesse sentido, imoral.

Quando encontro a atriz do lado de fora to teatro, não vejo mais aquela que acenava do lado de lá. Já está do lado de cá. Essa é uma distinção muito sutil.

Viver no corpo não é fácil. Mas nós não vivemos num corpo? Não somos isso? Não, ainda não somos. É necessário devir.

Referências:

Ficha técnica: concepção, atuação e dramaturgia: Grace Passô/ Equipe de criação: Kenia Dias, Nadja Naira e Ricardo Alves Jr./ Luz: Nadja Naira/ Técnico e operador de luz: Edimar Pinto e Lara Cunha / Trilha sonora: Ricardo Garcia/ Músico e operador de som: Maurício Chiari/ Figurino: Virgílio Andrade/ Fotografia: Lucas Ávila/ Pesquisa e produção: Nina Bittencourt

 

E Vaga Carne, atriz porque tem um jogo produzido virtualmente, cujas consequências são incorporadas, isto é, assumidas. Performadora porque instala os mundos e chama a si as forças inomináveis do atravessamento. Não sendo as mesmas coisas, elas não se excluem – muda a natureza da linguagem – o salto – quando um determinado grau de uma categoria é a força predominante.

 

 

 

 

 

Por Luiz Carlos Garrocho

Professor, pesquisador, diretor de teatro e filósofo.

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