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Uma prática artística que se faz como prática espacial: a imbricação do lugar e do convívio na performance urbana

 Por  Mariana de Lima e Muniz  [1] e Luiz Carlos Garrocho [2] –


Resumo: O artigo aborda a performance urbana a partir de uma pesquisa que se fez na implicação mútua entre o campo teórico e o da experimentação artística, na qual o lugar e o convívio são tomados como práticas espaciais, participando como tais no engendramento da tessitura cênica. Nessa perspectiva, mais do que inserir um objeto ou ação artística no ambiente urbano, tratou-se antes de conceber os possíveis de uma zona temporária de interstícios, na qual se dão as interpenetrações entre as presenças e as texturas da performance e do real. Isso significa que a performance urbana traça territorialidades em meio a outras territorialidades, realiza ocupações junto a outras ocupações. Os espaços da cidade surgem, de um lado, à luz das práticas que os consubstanciam; de outro, na alteridade radical que eles carregam enquanto espaços encontrados: tanto em relação aos espaços previamente destinados à apresentação artística, quanto no sentido de que trazem consigo uma realidade própria e, por essas vias, por possibilitarem brechas de contraposição e de inversão dos usos e sentidos hegemônicos (*). 

(*) Publicado originalmente na Revista Cabaret Filosófico n. 3 – Abril de 2016 – o qual encontra-se aqui na íntegra, com algumas pequenas modificações.


Dos mapeamentos conceituais enquanto genealogia das linhas de força

 Tomar a performance urbana como prática espacial é dizer, antes de tudo, que ela difere de uma apresentação artística nos chamados espaços públicos da cidade. Em que os habitantes/transeuntes desses lugares deveriam, necessariamente, interromper as práticas espaciais em que estão envolvidos, para assistir a uma cena. Ao contrário, o equacionamento expressivo passa a levar em conta, seja por emergência e/ou escolha do campo de ação, aquilo que se coloca em curso no movimento constitutivo da espacialidade. Esse é o princípio axial de uma performance que se processa não tanto no espaço, mas principalmente com o espaço.  

 Tal característica de espacialidade, que algumas práticas artísticas passaram a adotar, pode ser observada a partir dos sismos provocados pelos procedimentos da neovanguarda nos modos de pensar e fazer arte, nos anos de 1960 e 1970, com desdobramentos posteriores. Portanto, trata-se de, ao mapear os conceitos desse campo, traçar igualmente a genealogia das suas linhas de força. Não como determinismo causal. Ou porque na origem se encontraria uma possível pureza. Ao contrário, são embates, riscos e transformações contínuas. Diante do processo de institucionalização da performance urbana, juntamente com outras manifestações da Arte da Performance, em que estas se viram transformadas em novos gêneros artísticos, procura-se antes ir ao encontro das potências emergentes.

Não foi outra coisa o que a neovanguarda fez ao retornar à vanguarda histórica do início do Século XX (futurismo, dadaísmo, surrealismo, construtivismo), na qual se buscava combater uma arte separada da vida e, por isso, intangível quanto aos anseios de transformação social. Para tanto, seria necessário justamente atacar a pretensa autonomia da obra de arte moderna. Segundo Andreas Huyssen (2006), tratava-se de questionar “sua hostilidade obsessiva frente à cultura de massas, sua radical separação entre cultura e vida cotidiana e sua distância programática dos assuntos políticos, econômicos e sociais” (HUYSSEN, 2006, p. 5-6) [3].

 Entretanto, esse retorno da neovanguarda à vanguarda histórica deve ser visto, segundo Hall Foster (2014), não como uma mera repetição, mas sim como “uma estratégia contingente”, em que se procura “reconectar com uma prática perdida, para se desconectar de um modo presente de trabalhar percebido como antiquado, equivocado ou, por outro lado, opressivo” (FOSTER, 2014 p. 23). Se o primeiro aspecto se mostra temporal, o segundo seria espacial por possibilitar “um novo lugar para o trabalho” (FOSTER, 2014 p. 23). O que pode significar a criação de novas relações entre criação artística e pragmática do viver. Por conseguinte, o equacionamento expressivo que se faz na espacialidade – como esfera de sentido em que o social aparece – também deve incluir, nessa urgência, a necessidade de deslocar a experiência artística para os lugares não habituais e já consagrados tanto para a concepção quanto para a recepção.

Os aspectos contextuais e performativos são vistos, inicialmente, de modo localizado por Hall Foster (2014). Seriam contextuais porque os dadaístas teriam elaborado criticamente os fantasmas de sua época, não deixando a arte imune às contaminações. Performativos porque tais “ataques a arte foram conduzidos, necessariamente, em relação a suas linguagens, instituições e estruturas de significado, expectativa e recepção (FOSTER, 2014 p. 35). No entanto, pode-se levar esta pista deixada por Foster adiante, quando se pode dizer que tais aspectos passam a operar, na vanguarda experimental e nos desdobramentos posteriores, como linhas de experimentação artística.

 Portanto, nessa direção, os aspectos contextuais performativos se referem tanto a um sentido estrito (no desenvolvimento de procedimentos, propondo-se inclusive como linguagem) quanto ao sentido estrito (de modo que, em graus diversos, os traços contextuais e performativos podem surgir nas diversas linguagens artísticas). Desse modo, o aspecto contextual levaria em conta, em primeira mão, a Arte Contextual. Na leitura de Paul Ardene (2006), esta é uma arte que se realiza como intervenção, em apropriações possíveis dos espaços urbanos e das paisagens, não deixando de incluir as formações participativas (ARDENE, 2006 p. 10). Num sentido mais amplo, teríamos as abordagens voltadas para o ambiente e/ou contexto em se que encontram.  Exemplo disso pode ser visto na arte e na cena site-specific, em que há uma implicação mútua entre ação e lugar. Que pode ser tomada tanto no aspecto geográfico e físico quanto histórico, simbólico e social.

Quanto ao aspecto performativo, este pode ser visto em sua dimensão de linguagem na Arte da Performance, ampliando-se, contudo, para comparecer em graus diversos nas linguagens artísticas tradicionais. Nas artes visuais, por força da neovanguarda, ocorrerá o chamado giro performativo, em que a noção de obra como artefato deixa dá lugar à noção de obra como acontecimento (FISCHER-LICHTE, 2011). Aquilo pelo qual os artistas visuais se interessaram primordialmente na cena – seu caráter de processo que se dá mediante o encontro presencial – será o que conduzirá à experimentação. O caráter de aqui e agora do encontro, de condição ontológica para a existência da cena passa à condição de linguagem, de modo a se conceber uma cena não mais orientada pelos princípios dramáticos, mas sim como o propõe Lehmann, de característica Pós-dramática (LEHMANN, 2007). Como resultante desse giro performativo, temos todo um fenômeno de desfronteirização das artes, de contaminação entre as linguagens artísticas e de hibridização.

Exemplo contundente dos procedimentos neovanguardistas pode ser visto numa ação ocorrida em 1970, na cidade de Belo Horizonte. Numa manhã do dia 20 de abril, no fluxo e nas margens do ribeirão Arrudas, que leva o esgoto e atravessa a parte central da cidade (hoje ele está quase todo encoberto), aparecem várias trouxas ensanguentadas. Muitos que circulavam pelo lugar ficaram intrigados com aquilo, alguns acreditando tratar-se de corpos esquartejados. Foram acionadas a Polícia e o Corpo de Bombeiros. Era a intervenção de Artur Barrio (1945-), nascido em Portugal, mas que desde criança vive, ainda hoje, no Brasil. Na confecção do material, o artista utilizou “sangue, carne, ossos, barro, espuma de borracha, pano, cabo (cordas), facas, sacos, cinzel etc.” (BARRIO, 2015).

O que se pode notar é que não estamos mais diante de uma obra de arte como um artefato que pudesse ser apreciado em lugares e tempos distintos, sem que com isso ele perdesse suas propriedades.  A obra não é constituída exclusivamente pelo artefato das trouxas ensanguentadas, mas por tudo aquilo que constitui o acontecimento: a presença da Polícia e do Corpo de Bombeiros, os observadores que passam a fazer parte da própria paisagem e situação, o ribeirão Arrudas com as águas fétidas de esgoto etc. É nesse sentido que se pode falar, portanto, do que está em curso no movimento da espacialidade.

A ação, então intitulada pelo autor de SITUAÇÃO T/T1, fez parte da mostra Do Corpo à Terra, na Semana de Arte de Vanguarda (1970), quando foi inaugurado o Palácio das Artes, em Belo Horizonte [4]. Fazia parte, portanto, de uma demanda institucional, com a chancela do governo de Estado para a inovação das artes plásticas. Ocorre que Arthur Barrio não conformou a realização aos parâmetros idealistas do modernismo artístico, talvez com alguma alusão metafórica à situação política. Ele estabeleceu uma linha de fuga, realizando uma ação em que a espacialidade se dava pelos atravessamentos do real.

SITUAÇÃO T/T1, Abril de 19780, Belo Horizonte. Disponível em: http://www.contramare.net/site/pt/the-political-meaning-of-artur-barrios-bloody-bundles-cont/
SITUAÇÃO T/T1, Abril de 19780, Belo Horizonte. Disponível em: http://www.contramare.net/site/pt/the-political-meaning-of-artur-barrios-bloody-bundles-cont/

Ao mesmo tempo que faz uma crítica à instituição das artes, o artista proporciona uma experiência em que os habitantes e transeuntes do lugar, assim como os agentes públicos (Polícia e Bombeiros), tornam-se parte do equacionamento expressivo. Justamente por estarem inseridos, a partir de seus lugares, na própria produção do espaço. Seja como observadores, seja como condutores de um procedimento. Ocorre, portanto, uma reconfiguração do estatuto do observador/espectador, numa ação emque o cotidiano se encontra exposto e tematizado. Em que se apresentam as características de uma arte contextual (que tanto provoca o espaço quanto se permite ser modificada por ele) e performativa (que processa os referentes críticos, temáticos e outros em uma poesia ao modo da ação, de característica autorreferencial).

Para tanto, há que considerar justamente que o espaço é sempre um espaço praticado, como lembra Lefebvre (1991).  Que antes de tudo, como mostra a geógrafa Doreen Massey, é um produto das inter-relações, no qual se dá a coexistência de trajetórias heterogêneas, estando sempre em processo, por fazer-se (MASSEY, 2012:31-33). De modo que o espaço, então, é uma experiência relacional.

 Trata-se de ver, portanto, como o espaço, considerado um espaço praticado e por se fazer, tomaria parte no equacionamento expressivo da performance urbana. Em outras palavras, seria perguntar de que modo o lugar e o convívio tomam parte no engendramento da tessitura cênica.

Da imbricação entre lugar e convívio à cena dos interstícios

Como se pode notar na intervenção de Arthur Barrio naquela manhã dos anos de 1970 em Belo Horizonte, não se espera que o lugar seja apenas um suporte para a exibição de uma obra (ou de uma cena), nem que o caráter de encontro seja silenciado para que se dê a recepção. Pois que, ocorrendo noutro contexto espaço-temporal, o acontecimento seria outro – e não uma obra tipo artefato ou espetáculo a ser reiterado para uma audiência, cuja função exclusiva seria a de decifrar/interpretar os signos que estariam sendo emitidos.

No entanto, o fator de encontro, a constituir um dos traços de performatividade dessa ação, não inclui a presença corpórea do artista – passível, então, de receber as reações das pessoas e, como tal, se ver modificado. Pois se isso ocorre, surge outro traço, que é o do convívio cênico. O que vai, portanto, singularizar o acontecimento – o caso, por exemplo, da performance urbana.
 O convívio é visto por Jorge Dubatti (2007,2010) como sendo a “instituição ancestral” em que se dá o “encontro de um grupo de homens em um centro territorial, em um ponto do espaço e do tempo” (DUBATTI,2007:47). Em termos de convívio cênico, é considerado por ele como “princípio e modalização da teatralidade” (DUBATTI, 2007:43) [5]. Que irá formar a tríade teatral com a poiesis e a expectação.

Pode-se dizer que a história do convívio cênico é, de certo modo, a história dos modos em que a cena busca controlar e/ou incorporar sua própria característica contingencial – ou seja, o acontecimento. Trata-se dessa condição de toda realização cênica: tempo e espaço vividos em comum ao modo da presença.

Para tanto, é necessário ver que lugar e convívio não são entidades isoladas. Como nota Erika Fischer-Lichte (2011), “a espacialidade tem sua origem no movimento e na percepção dos atores e espectadores” (FISCHER-LICHTE, 2011:233) [7]. Portanto, os dois fatores lugar e convívio, já estão implicados como ponto de partida da realização cênica. Entretanto, uma cena contextual e performativa levará essa condição a outro patamar.

 Luciana Eastwood Romagnolli (2013) justamente se propõe a pensar o convívio, no âmbito da cena contemporânea, assumindo outro estatuto que não o de ser somente a condição ontológica da cena. De modo que, em termos de “um teatro que reflete sobre si mesmo como linguagem”, passa “a colocar em evidência essa dimensão” convivial (2013, p. 11). De modo que se possa trazer “essa relação fundadora do teatro – entre ator e espectador – à superfície visível da dramaturgia (2013, p.12).

Nessa perspectiva, o convívio pode estar mais ou menos implicado com o lugar. De um lado, observa-se nisso o que se pode chamar de diferenças de grau. No entanto, quando ocorre aí uma implicação que é levada a tensionamento maiores, depara-se com uma diferença de natureza. Numa cena contextual e performativa, que se faz como prática espacial, o lugar igualmente passa à superfície do acontecimento. Que é uma das características marcantes da cena site-specific. Mike Pearson e Michael Shanks a definem como sendo “a última ocupação de um lugar em que outras ocupações – seus vestígios materiais e histórias – ainda são evidentes” (PEARSON and SHANKS, 2001:23) [8].  No entanto, no caso da performance urbana, predomina não tanto o caráter de ocupação última, mas de simultaneidade. No sentido de que a performance urbana, na perspectiva desse artigo, ser antes de tudo uma ocupação em meio a outras ocupações – aponto de se ver contaminada por elas. Não só devido à imprevisibilidade que caracteriza os espaços públicos, mas principalmente porque se postula, nessa perspectiva, a incorporação do lugar e do convívio na tessitura da cena.

Portanto, a performance urbana emerge como uma cena de interstícios.  André Carrera, (2009, 2012, 2015) mostra em que consiste esse processo, ao falar deum teatro de invasão, em que ele postula de um lado a penetração dos tecidos da cidade pela performance, de outro, o movimento oposto – a cidade é que penetra na performance.

No primeiro aspecto, trata-se tanto da necessidade de não se confundir totalmente com as outras ocupações em curso quanto da tarefa de ressignificar os sentidos do viver na cidade – daí o caráter de invasão. André Carrera (2009) mostra, desse modo, que deve haver uma “distância” da ação performativa em relação às ações que estão em curso no urbano. Inclusive com o intuito de se distinguir das práticas para-teatrais. Pois estas se contentariam com o “próximo e familiar”, enquanto a invasão conduziria antes à “abertura do espaço do novo, do diverso, que é exatamente o que constitui um estímulo a um olhar distinto sobre as formas do estar na cidade” (CARRERA, 2009, p. 07).

Quanto ao segundo aspecto, este seria o deslocamento dos usos cotidianos e utilitários da cidade, agregados que estão às relações de pertencimento que os habitantes e transeuntes do urbano trazem consigo, segundo Carrera (2012). Portanto, nessa característica invasora, a performance produziria uma ruptura, de modo a “causar algum distúrbio no fluxo” da vida urbana (CARRERA,2012:06). Nesse aspecto, Antônio Araújo (2011) se propõe, por sua vez, a traçar estratégias de intervenção por ele denominadas de ações disruptivas. Segundo Araújo, uma ação disruptiva, como sendo “capaz de gerar algum tipo de perturbação, de desequilíbrio, de desestabilização na percepção e na experiência dos transeuntes durante sua circulação nas vias urbanas” (ARAÚJO,2011, p. 01).

Ocorre, assim, uma tessitura da performance ao modo de uma “trama aberta”, como diz André Carrera (2009, p. 08). Nesse caso, os habitantes e transeuntes também “estão fabricando o ambiente da rua e produzindo a teatralidade que representa a matriz das intervenções teatrais que tem o espaço aberto da cidade como lugar” (CARRERA, 2009:03).

 Interessa, portanto, ver que se a performance urbana se desenha como uma prática espacial, ela o faz num contexto singular: o dos chamados espaços públicos da cidade. Nessa perspectiva, quando se coloca em pauta o lugar e o convívio como práticas espaciais e como partícipes no engendramento da tessitura da cena, cabe ver as linhas procedimentais em que isso se torna possível.

Inscrições no movimento do urbano

Leandro Silva Acácio e Saulo Salomão, Performance Kaza Kianda,  região central de Belo Horizonte – acervo do Agrupamento Obscena, 2011.

Um dos motivos da cena ir aos espaços da cidade poderia ser o fato de ali se encontrar um público potencialmente disponível, acrescido do desejo de democratizar o acesso à arte. Porém, não é o que a performance urbana, entendida como prática espacial se limitaria a realizar. Então, qual o objetivo de ir à cidade?

Pode-se dizer que a performance se faz como inscrição no movimento do urbano. Nesse sentido, portanto, é que se poderia extrair as potências desse tipo de prática artística. Henri Lefebvre (1991,2001) distingue justamente entre o que seria o urbano e o que seria a cidade, apesar de seus planos se verem mutuamente implicados. O primeiro se mostraria antes em termos de realidade social, na medida em que se coloca em curso a obra dos cidadãos. Ou seja, – a “reapropriação, pelo ser humano, de suas condições no tempo, no espaço, nos objetos” (LEFEBVRE, 1991:163). Quanto à cidade, esta seria “a realidade presente, imediata, dado prático-sensível, arquitetônico” (LEFEBVRE, 2001:49) [9].

Uma prática artística que se vê inserida nesse movimento torna-se antes uma modalidade de retomada dos sentidos do uso, não tendo por objetivo, como mostra Lefebvre, “enfeitar o espaço urbano com objetos de arte” (LEFEBVRE, 2001:134). Mais do que isso, “os tempos e espaços se tornam obras de arte” (LEFEBVRE, 2001:134). Desse modo, a performance se inscreveria no urbano como uma “arte de viver na cidade como obra de arte” (LEFEBVRE, 2001: 135) [10]

Quando se fala, portanto, da busca por espaços outros que não os espaços já destinados à circulação artística, os espaços da cidade não aparecem, na perspectiva da performance nos meros espaços alternativos. Inscritos no movimento do urbano, não constituem apenas locações, mas constituem antes uma alteridade radical.

Em primeira instância, estes são espaços encontrados. O termo foi utilizado por Richard Schechner (1994) (found spaces), em1968, a partir de Alan Kaprow, quando este se referia à importância de se buscar espaços não consagrados para a criação de happenings. Schechner o concebe em termos do teatro ambiente (environmental theater), para distinguir do que ele chamava de espaços transformados (transformed spaces), que são aqueles que justamente passam por modificações para a apresentação cênica.

Mais do que a designação de uma locação, os espaços encontrados também se inscrevem, como conceito, no movimento do urbano. Eles o fazem pela alteridade radical que comportam: primeiro pelo fato de existirem na espacialidade do urbano, em termos da tramada vida social: são os habitats, os lugares de trabalho, de culto religioso, de produção industrial, de comércio, de lazer, de circulação etc. Em segunda instância, eles se inscrevem como espaços outros.

Tal ocorre quando uma ocupação artística descortina, nele, uma existência. Nesse sentido, o espaço encontrado se torna uma heterotopia, para lembrar Foucault (2009). Como tal, é um espaço da esfera do mundo vivido. que Foucault (2009), para diferenciar dos espaços das percepções internas, chama de “espaço de fora” (FOUCAULT, 2009: 414):

 o espaço no qual vivemos, pelo qual somos atraídos para fora de nós mesmos, no qual decorre precisamente a erosão de nossa vida, de nosso tempo, de nossa história, esse espaço que nos corrói e nos sulca é também em si mesmo um espaço heterogêneo (FOUCAULT, 2009:414).

Isso pode se dar debaixo de um viaduto, na fachada de uma loja, na escadaria de um prédio, num terreno baldio, no ponto de ônibus, na casa de prostituição agregada ao estabelecimento cerealista etc. Pois, na perspectiva que este artigo desenha, tudo vai depender da implicação mútua entre a prática configurada em um modo de vida e a prática artística em curso.

Os chamados espaços públicos da cidade são um tipo de espaço encontrado. Portanto, não se identifica o urbano como sendo exclusivamente a rua, em oposição à casa. Ou mesmo na modalidade da separação rígida entre público e privado.  De fato, ali se dão, na esfera do público, as forças que configuram o destino quanto aos modos de apropriação dos tempos e espaços da cidade.

No entanto, para pensar as potências da performance urbana, interessa perceber os chamados espaços públicos como espaços vazados. Num sentido, o termo se refere ao fato de que a prática artística não pode controlar quem pode e quem não pode habitar e transitar neles. Noutro, porque mesmo nos espaços públicos há apropriações privatizantes, muitas delas institucionalmente garantidas pelo Estado (para dar um só exemplo, a Praça da Estação, em Belo Horizonte – MG, costuma ser cercada para abrigar shows musicais patrocinados por empresas). Mais ainda, porque, na lógica de um performador urbano, as territorialidades estão sempre sendo feitas e desfeitas– assim como as casas de papelão de um morador de rua. Pois será nesse universo instável e dado à refazimentos constantes, que suas ações irão transcorrer.

Lugar e convívio como prática espacial e tessitura cênica

Tais espaços outros, espaços encontrados e vazados, constituem a materialidade contextual da performance urbana. Pois neles, não sendo o acesso privilegiado e/ou controlado, coloca-se o possível de o lugar e o convívio serem tomados como prática espacial e tessitura cênica. Isso significa que se reconhece três tipos de prática: a prática do viver no lugar (habitantes e transeuntes), a praticado observar e, por fim, a prática espacial que é a própria performance (as territorialidades que ela pode instaurar nos espaços da cidade).

Como visto acima, isso não significa que os artistas operem de modo a contar que os habitantes e transeuntes abandonem suas práticas espaciais para terem exclusivamente uma face voltada a alguma apresentação espetacular. Nem tampouco que esses dois conjuntos se tornem totalmente indistintos – como visto com André Carrera (2009). Tal proposta se consubstancia, em graus variados, na imbricação mútua entre lugar e convívio, em diversas modalidades de performance e urbana. São muitos os grupos, artistas individuais e coletivos que misturam intervenção e performance, que buscam performar nos interstícios da cidade.

Leandro Lara e Sitaram Custódio, Olho da rua, região central de Belo Horizonte, 2015. Acervo do Coletivo Contraponto

Este artigo traz essas colocações partir de uma pesquisa que teve por objeto de estudo as performances urbanas do Coletivo Contraponto – MG. Numa interface entre performance e teatro físico, o Contraponto buscou compor com o lugar e o convívio de modo de modo que eles pudessem participar do engendramento da tessitura cênica. Para tanto, duas linhas procedimentais foram investigadas. A primeira tem por base as distâncias, as aproximações e as negociações territoriais. Em síntese, tudo aquilo que concerne à geografia do acontecimento.  Incide, portanto, na pragmática do mundo vivente. Em que o habitante/transeunte tanto pode se ver como parte da própria cena, como se posicionar em relação à mesma, dos mais variados modos – que vão de uma atitude ou de uma ação, de uma interpelação verbal até a atuação ou performance. Na segunda linha estão os procedimentos de composição: a formação de paisagens , a criação de situações e as durações compartilhadas. O artista é, de fato, o propositor destas, mas não se vê como a única voz no processo de enunciação em curso – ao contrário, esforça-se para que esta seja, afinal, uma polifonia do urbano [11]

Notas

[1] Atriz e diretora teatral. Professora Titular da Escola de Belas Artes da UFMG.

[2] [Professor e criador cênico na interface entre Teatro Físico e Performance. Participa do Coletivo Contraponto – MG.

[3] Tradução nossa.

[4] Com  a curadoria de Frederico Morais e Maristela Tristão, tendo a participação de outros artistas. Cf. RIBEIRO, 2012:111.

[5 a 10] Tradução nossa.

[11] Tomo o termo polifonia a partir das colocações de Nina Caetano no contexto de uma criação que se dá mediante processos colaborativos. No caso, a autora postula a participação dos espectadores (CAETANO, 2011).


Referências

ARAÚJO, Antônio Carlos. Ações disruptivas no espaço urbano.  VI Reunião Científica da Abrace, 2011b.Disponível em: .”>http://<http://muvi.advant.com.br/artistas/a/artur_barrio/artur_barrio.htm>..  Acesso em: 17 out. 2014.

CAETANO, Nina. Tecido de vozes: a texturas polifônicas na cena contemporânea mineira. Tese defendida no Departamento de Artes Cênicas da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo. São Paulo: USP, 2011.

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LEFEBVRE, Henri.  The production of space. Translated by Donalld Nicholson-Smith. Oxford, UK and Massachusets, USA: Blackwell Publishing, 1991.

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LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. Tradução de Pedro Süssekind. São Paulo: Cosac & Naif, 2007.

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RIBEIRO, Marília Andrés. Reflexão sobre a arte brasileira nos anos de 1960/70. Revista Porto Arte: Porto Alegre, V. 19, N.33, nov. 2012. Acesso em: 11 jan. 2015.

ROMAGNOLI, Luciana Eastwood. Convívio e presença como dramaturgia: a dimensão da materialidade e do encontro nas criações da Companhia Brasileira de Teatro. Dissertação (Pós-Graduação em Arte) – Escola de Belas Artes – Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte: UFMG, 2013.

SHECHNER, Richard. Environmental theater. New York: Aplause, 1994.


Este artigo originou-se da pesquisa de doutorado em Artes, realizada por Luiz Carlos Garrocho, no Programa de Pós-Graduação em Artes da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, como orientação de Mariana de Lima e Muniz.



Por Luiz Carlos Garrocho

Professor, pesquisador, diretor de teatro e filósofo.

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