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Teatro e nova dramaturgia: uma conversa com o Espanca

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Amores Surdos. Foto de João Marcos Rosa

Algumas histórias

O grupo Espanca realizou um debate sobre os rumos e linhas de sua atuação (outubro 2009),  quando comemorava cinco anos de criação cênica. A avaliação, da qual tive a honra de fazer parte juntamente com outros convidados, foi uma das últimas ações do Projeto Espanca à Mostra, constando de apresentação da trilogia de Por Elise, Amores Surdos e Congresso Internacional do Medo.

Um ato de generosidade e de coragem, este de se expor a uma avaliação por parte de um público mais próximo, por um vínculo ou outro, às trajetórias dos artistas que compõem o coletivo desde o início de sua formação (Grace Passô, Gustavo Bones e Marcelo Castro). Exponho, aqui, apenas as questões que apresentei nessa conversa com o grupo e convidados.

O Espanca é um grupo com apenas cinco anos de estrada, que obteve uma resposta imediata de público e crítica, agregando mais artistas e repassando. Por isso, entendo que o grupo queira, depois dessa trilogia de sucesso, rever sua trajetória e caminhos.

Grace Passô, atriz, dramaturga e diretora, é uma pessoa importante nesse coletivo de criação que é Espanca.  Por onde ela andou? Inegável  a importância, no seu processo, da participação com Anderson Aníbal, na Cia. Caixa Clara. Aliás, parte do grupo atual também passou por essa experiência.   Havia ali uma confecção de ações e imagens minimalistas, não-histriônicas, associadas a uma poética que se dava tanto no texto da encenação quanto no texto falado pelos atores e atrizes. Isso era um diferencial: Anderson Aníbal trabalhava com uma separação, intencional ou não, entre o que os atores falavam, a história e a narrativa (montagem). Tudo isso confluía numa encenação carregada de lirismo e pequenas ações (corpos que se encontravam diante de corpos, em estados de quietude e entrega afetiva, sem exaltações emocionais) etc. Além disso, Anderson Aníbal buscava uma criação cênica que pudesse expressar a vivência urbana de jovens, de sua geração e que não se encontrava nos textos clássicos. Daí, também, posso concluir, a investida nos afetos corporais, conferindo aos atores um carga   menos interpretativa e mais performática em alguns aspectos. Por exemplo: algumas danças pessoais que sintetizavam o momento do personagem (em Coisas Invisíveis).

Poucos, entretanto, conhecem um trabalho que Grace desenvolveu com Leonardo Bertholini (Grupo Tronco), numa apresentação no Cabaré Voltaire, projeto idealizado por mim e Ricardo Aleixo, quando este que escreve dirigia o Centro de Cultura Belo Horizonte. O projeto era voltado à arte da performance e às criações que interagiam com o prédio histórico. Nessa ocasião, o Cabaré ocorreu dentro de outro projeto, a Zona de Ocupação: a maratona de um dia e uma noite (até por volta de 3 horas da manhã) de intervenções, performances e shows, pelos espaços internos e externos. Ricardo Júnior era um dos parceiros dessa ação e convidou Grace e Leonardo para realizarem uma performance. Os dois se inspiraram em textos de Heinner Muller, e começavam num dos salões, num jogo sádico, violento e erótico. Grace desaparecia e Leonardo se dirigia para a sacada levando o público para esse ponto-de-vista. E o que víamos: na madrugada, Grace escrevia no asfalto, em letras que ocupavam de um lado a outro das calçadas, a palavra J-O-G-O. Enquanto isso os carros passavam e ela, corajosamente, jogava com isso também. Foi uma visão de cinema. Depois ela desaparecia no meio da noite. O público ficou estupefato.

Uma cena que não se repetiu mais.  E então, aparece Por Elise. E daí para frente todo mundo sabe da história e do sucesso, a partir de uma apresentação no projeto Cenas Curtas do Galpão Cine-Horto. Num processo nitidamente colaborativo, emergiu uma definição em termo de linhas de força. Ou, ainda, da forma de uma força.

Linhas de força

O que o Espanca trouxe? O texto falado pelos atores, a dramaturgia e o texto cênico, todos eles juntos, apresentaram elementos que, se já vinham sendo trilhados de um modo ou de outro por Grace (e, de certo modo, pelos parceiros e parceiras, cada um na suas vivências), permitiram um salto. A partir da cena curta, o grupo elaborou um espetáculo mais consistente, desenvolvendo suas principais linhas: a fragmentação do texto falado, tendo sua incompletude e lacunas como elementos que produziam o sentido; a simultaneidade de histórias-fragmentos-vidas, que não possuíam uma relação de unidade, nem de conflito em desenvolvimento dramático, mas sim de encontros, nos quais cada um conserva sua independência e, ainda, abre novas entradas; o caráter performativo das atuações (e eu chamo a atenção para este aspecto), entre outras linhas que poderiam ser enumeradas.

Na cena curta de Por Elise, a simplicidade que alguns críticos e comentadores sublinham, eu prefiro ver a partir de outra ótica e geometria: das linhas de sobriedade. E estas são colocadas de tal modo que temos, afinal, uma composição de coisas interrompidas. Nisso residia o lirismo quase bruto da ainda cena curta, que era Por Elise. Uma mulher, uma vizinha, que narrava uma história (Grace) enquanto caiam abacates , que estouravam no chão. Mas era uma narração que misturava a técnica do rapsodo com a intervenção em tempo real (os abacates caíam…), que não se remetia a algo além da cena. Ou seja, não temos o significante remetendo a um significado. E tal ocorrência não estabelecia uma conexão de significação dentro da narrativa: o espectador está mais ou menos livre para criar, ele também, a sua paisagem narrativa. Havia uma mulher cujo cachorro estava para ser sacrificado. (Samira Ávila). Um funcionário da prefeitura (Paulo Azevedo), mas este queria ir pro Japão. E um lixeiro que corria atrás do seu caminhão (Gustavo Bones). E um cachorro (Marcelo Castro)  que falava e latia ao mesmo tempo. Aparecia, na primeira versão, o pai desse lixeiro, que sumiu na versão posterior.

O caráter performativo da atuação é outro elemento sublinhado, por mim, em Por Elise. Os atores realizam ações que não decorrem de uma lógica interpretativa e causal, mas sim de estados que são produzidos. Certo, há uma história sendo narrada, mas não é o texto dramático o condutor das ações – há, na verdade, uma dramaturgia outra. Uma pessoa bate palmas, como uma oração ou coisa assim, e no entanto isso é meio patético, tem a ver com a situação e ao mesmo tempo não tem a ver. O que mais temos são hiatos.

Não se pode negar a importância da arte da performance na busca de novas dramaturgias. Justamente a partir desse universo expressivo é que penso o caráter performativo de algumas criações teatrais. Sendo intencional ou não,  há uma tradição de vanguarda, um repertório de procedimentos e inovações, que constituem a performance. Num encontro com o encenador Henrique Diaz, no Oi Futuro-BH, ele disse que um dos aspectos básicos e fundamentais de uma montagem como Ensaio Hammlet não é considerado pelos críticos: o encontro do texto dramático com a performance. E é desse encontro que se dá a desconstrução. No caso do Espanca, até o presente momento os textos dramáticos foram criados por Grace e atores num processo colaborativo, sendo que o aspecto performativo já surge na própria construção desse  roteiro.

Podemos ver uma criação cênica como uma composição de linhas:  máquina abstrata (veja, numa postagem sobre performance, a abordagem dessa ferramenta de Deleuze e Guattari. E quais linhas estão passando: há linhas que tocam o público, há linhas de significação e representação (na caracterização, nas falas, nos encontros etc.), há linhas de ruptura a-significante (o que se segue não está previsto no que lhe antecede), há linhas de texto falado que guardam autonomia e ao mesmo tempo constituem mais um elemento da encenação etc. Ao mesmo tempo, uma linha é uma força. Em vez de pensarmos com a significação de uma cena, podemos pensar nas forças que tomam a coisa, que se expressam através dela (Nietzsche visto por Deleuze). As forças que predominam em Por Elise são as da fragmentação, da descontinuidade (a mulher que narra é uma vizinha, mas nenhuma das ações decorre de sua vontade e psicologia ou mesmo de outras personagens, são apenas estados-situações deflagrados num momento presencial, diante do espectador).

E veio Amores Surdos. Não me alongo aqui. Mas o grupo Espanca avança mais e mais num lirismo extremo e sóbrio: a imagem de um garoto (Paulo Azevedo), com asma, que guarda um rinoceronte no quarto. A lama que se derrama, literalmente, pelo espaço. Um dos filhos que é sonâmbulo (Gustavo Bones), o outro que tem asma (Azevedo), uma filha sempre ligada num tempo outro (Samira Ávila), um filho que procura emprego (Marcelo Castro) e uma mãe (Grace) que encerra o universo dentro da casa, agarrando os afetos ali gerados. Há imagens, sobretudo imagens. Temos um texto falado que é menos fragmentado. A segunda montagem, maior, de Por Elise, já avançava nessa direção: num jogo entre história, atuação dramática e performance. Diria, performação. Exemplos: a lama escorrendo pela casa (matéria real que invade o espaço da ficção),  os sapateados (que permanecem heterogêneos à cena, tais como as palmas em forma de oração em Por Elise) e produzem uma suspensão na ação dramática, o rapaz que tenta voltar do primeiro emprego e não consegue entrar (a porta é de vidro), permanecendo do lado de fora até o fim de suas forças e desespero).

Com o espetáculo seguinte, Congresso internacional do medo, linhas de força que jogavam numa relação mais horizontal e dada às variações abertas, tornam-se dominantes. Essas linhas são a do texto cênico que se desdobra da fala dos personagens e das conexões significantes que as mesmas realizam, produzindo um lirismo menos bruto e mais acessível. Há algumas performações: por exemplo, quando dois dançarinos (Marise Dinis e Sérgio Penna)  interagem em alguns momentos com a cena, procurando estabelecer conexões de sentido e, ao mesmo tempo, preservar sua heterogeneidade. As atuações, que agora chamo de interpretações, são belas e cuidadosas. Seguem as linhas de força do Espanca: sobriedade e lirismo, com certo tom de patético. Porém, não nos encontramos mais com as performações. São outras as linhas de força que predominam no jogo.  Há imagens, é verdade: a enorme talha no chão que derrama sangue pela torneira, sem parar. Ocorrem ainda as fragmentações no texto falado pelos atores. Mas tudo isso, agora,  é  parte de uma relação mais estabelecida com a significação. De fato, prevalece primordialmente uma encenação que resulta,  tanto em termos de história quanto de narrativa (montagem), do texto falado pelos atores. Há toda uma construção dramática, com seus nexos e lógica própria. Não há como comparar obras e processos de arte. No entanto, percebo que são outras as linhas de força que predominam nesse espetáculo.

Uma definição da idéia de todo

Qual a definição de todo que cada um desses espetáculos comporta? Um todo aberto tende à incompletude, à variação infinita, às incompletudes, à suspensão e às frestas… Um todo fechado tende à plenitude da significação, à sua sublimidade e elevação diante (e distante) da vida. São máquinas, que podem ou não funcionar.

Quer tudo isso dizer de uma tendência do Espanca? Ora, Grace Passô, Marcelo Castro e Gustavo Bones, fundadores do grupo, estão vivendo seus momentos de criação. Querer ver nisso uma linha evolutiva seria muito exercício de futurologia. E não é um assunto ao qual eu gostaria de gastar meu tempo. Porém,  posso exercitar minha atenção e meu interesse, como espectador e criador, nos traços de expressão e nas poéticas que o Espanca me traz, anotando as linhas de força que aparecem nos trabalhos. Há um gosto pelo lirismo, outro pela poética da cena, outro ainda que se liga à fragmentação do discurso, vejo também um desejo de  manter heterogeneidades juntas e sem que elas se façam homogêneas, uma vontade de tocar o público com espectros de significação etc. Forças são forças. Como diz Deleuze na sua leitura de Nietzsche: uma sintomatologia.

Uma máquina abstrata (Deleuze e Guattari) diz desse fluxo, dessas  camadas que sedimentam e outras que se movem, sendo que umas e outras se remetem e se modificam mutuamente. E, também, do que procura prevalecer e de como o faz.

O grupo Espanca movimenta-se não só com os espetáculos da citada trilogia, mas outras criações paralelas, produzindo buscas sobre novas dramaturgias e criação cênica. Esse me parece ser a trilha essencial desses espetáculos. Porém, cada um deles resolve isso com seus embates próprios, nos quais libera-se esta ou aquela linha de força.

O que a gente quer e deseja? Uma pergunta que podemos sempre nos colocar. E que possivelmente poderá ter uma resposta diferente a cada momento.

Observações –

– O elenco citado no texto refere-se aos espetáculos que  eu assisti. No entanto, esse elenco se modificou ao longo do tempo.

-Elenco de Congresso Internacional do Medo: Alexandre de Senna, Gláucia Vandeveld, Gustavo Bones, Izabel Stuart, Marcelo Castro, Mariana Maiolini, Marise Dinis, Sérgio Penna

Por Luiz Carlos Garrocho

Professor, pesquisador, diretor de teatro e filósofo.

2 respostas em “Teatro e nova dramaturgia: uma conversa com o Espanca”

Marcelo,

Em meio aos estrondos do dia a dia, é o que pode nos dar um horizonte de sentido. São os encontros e os acontecimentos livres o melhor dessa história. Acompanhar os caminhos do Espanca, conversar sobre escolhas, procedimentos e desejos de criação, é coisa muito boa.

Abraços

Garrocho,

É admirável o seu fôlego de espectador-pensador-artista !

Fico muito feliz por você ter dedicado sua atenção e interesse em criar um diálogo tão potente com nosso trabalho.

Precisamos cuidar dos diálogos, alimentá-los.

um grande abraço,

Marcelo

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