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Teatro das figuras sombrias: Armatrux e Eid Ribeiro

armatrux no pirex

Maestria

No Pirex, novo espetáculo do Grupo Armatrux (Belo Horizonte) e Eid Ribeiro (direção), povoa o palco de figuras e sombras, buscando um humor mórbido, num teatro sem falas. Mas o que me chama a atenção, além da competência do Armatrux e da “carpintaria” teatral de Eid (aliás, um termo que andou meio desaparecido), é a questão desses actantes-máscara, segundo o estudo de Matteo Bonfitto (O ator compositor). E, por conseguinte, como o ator configura esse universo. Interessa, sobretudo, lançar um breve olhar sobre a compreensão do teatro  e do ator sobre a qual Eid Ribeiro trabalha, ao recortar essas figuras e sombras.

Não faço aqui uma análise ou mesmo crítica de espetáculo, aliás, belo e competente, como o são as criações de Eid Ribeiro, sem falar no Armatrux. Eid: um mestre de sua arte. E cada um que seja mestre do seu caminho. Porque, como diz uma expressão Zen, “a sabedoria dos outros não te ajuda em nada”. A maestria de Eid é uma vida dedicada ao problema que arrisco chamar de “metafísica” teatral e cênica.  Por que chamar de “metafísica”? Porque Eid não faz simplesmente teatro, como se diz, por uma opção profissional apenas. Esse modo legítimo de se posicionar socialmente, mas que se resume, muitas vezes, a uma distinção. Como dizia o poeta e ator Hélio Zolini,  Eid “arrasta consigo a velha lona do circo”. E junto a esta, uma visão de mundo. Perguntamos, então: qual a relação entre essa “metafísica” e  sua “técnica”?

O que vem a ser uma técnica

Não existe o que alguns identificam como sendo a técnica. Há técnicas. Não temos um mundo, mas a proliferação de mundos. Heidegger fala de duas concepções comuns de técnica: como meio para um fim  e como atividade do homem (as técnicas ou as diversas artes). Uma resposta pertence à outra: técnica como instrumentum. Mas a técnica diz também, como tekné, aquilo que “deixa chegar à vigência o que ainda não vige”. Isso porque a técnica, sendo um instrumento, tem a ver com a causalidade. Assim, a técnica, diz Heidegger, deixa de ser meramente um simples meio para ser “uma forma de desencobrimento”. Pertence, portanto, ao ato que é próprio da poiesis. É um modo de dispor.

Deleuze e Guattari dizem que a técnica não vem sem um agenciamento maquínico. Ou seja, ela é vinculante a um desejo, a um modo de se produzir no mundo: uma singularidade.  De um lado a outro, as duas concepções se tocam num ponto: a técnica não vem em primeiro lugar – ela vem junto com um mundo.

O teatro, portanto, não possui uma técnica somente, mas tantas técnicas quantos forem os teatros, tendo em mente as opções estilísticas etc. E como tais, pertencem aos modos de subjetivação que toda objetivação suporta ou gera. Quando falamos de técnica em teatro, não podemos deixar de considerar esses dois aspectos: o que descortina um mundo e o que gera uma produção desejante. Assim, a técnica de um encenador-dramaturgo como Eid Ribeiro é o que lhe permite abrir um mundo. Mas não existe separada desse mesmo mundo.

No Pirex e outras criações

Voltemos ao espetáculo. No Pirex é uma homenagem às comédias mudas. Há também um clima de comédia macabra. Em torno de uma mesa, estranhas figuras preparam-se para um jantar. A dona da casa, o garçom velho, a cozinheira, o garçom jovem e o velho. A peça inicia-se num clima propositalmente lento e arrastado. Há todo um ar patético que irá ser explorado por Eid e pela trupe do Armatrux ao longo do espetáculo.

Como funciona a atuação e criação dessas figuras e sombrias? Este é um teatro que se configura através do actante-máscara. Matteo Bonfitto faz uma análise dos actantes, ou seja, daquilo que atua. Um desses actantes seria o actante-máscara, que tanto pode ser uma persona (de caráter psicológico) ou um tipo (uma silhueta ou qualquer outra aparição da uma imagem de um ser, sem que o traçado psicológico seja aprofundado).  No Pirex apresenta o actante-máscara que se expressa como um tipo.  Posso perceber nessas escolhas por uma tipologia, o profundo amor de Eid Ribeiro pela tradição de um teatro popular brasileiro. Um teatro que cujos personagens não apresentavam os traços desenvolvidos de uma personalidade, ou cujas atuações não possuíam a interpretação interiorizada do drama burguês. Um teatro que se apresentava nos circos, trazendo figuras de aparição (a morte, monstros, fantasmas etc.) ou situações de pura vivacidade lúdica. Um teatro para impressionar.

Ao lado dessa vertente popular,  Eid Ribeiro desenvolveu, desde o início de sua carreira como diretor, uma visão vanguardista do teatro, isto é, capaz de deflagrar na cena um campo de pesquisa formal e estética, aliada a uma visão corrosiva do mundo que vivemos. Eid sempre explorou os actantes tanto como persona quanto como tipo. E dentro de uma perspectiva interpretativa (que supõe a existência de papéis) e dramática. E sua visão da atuação apresenta uma palheta estilística bem ampla, indo desde uma atuação contundente, delineando seres de forte componente social (Cigarros Souza Câncer), ou de puro jogo dramático (Fala baixo senão eu grito – início dos anos 70), de espectros e grafismos (Risos e Facadas). Há influências de Beckett também, o que modifica substancialmente esse plano interpretativo e dramático com o qual trabalha. Outras abordagens dessa construção papel-personagem poderiam ser anotadas, como a mendiga que vira cabra em O coberto e a bicicleta, entre outras visões. Entretanto, do ponto de vista do ator, esse teatro supõe sempre a necessidade de saber incorporar um papel. Não nos esqueçamos que Eid é, além de diretor, um dramaturgo de mão cheia.

Souza Câncer, por exemplo, um espetáculo dos anos 70, é um dos inúmeros exemplos de sua dramaturgia. E revela outra concepção, que não a dos tipos. As personas são desenvolvidas em suas motivações interiores, empurrando o drama para o seu abismo, expondo a maldição social a que estão submetidas. Trata-se da história de dois homens  que dirigem um rabecão (interpretados por Bernardo Mata Machado e Antônio Grassi), carro de polícia dedicado a recolher cadáveres. Num certo dia, eles encontram sobre o trilho de trem, despregado do cadáver, um braço. Um deles resolve enterrar este pedaço de um corpo no quintal de sua casa, supondo que isso poderia lhe dar sorte. O outro também queria melhorar de vida, decidindo, então, provocar um acidente e perder uma perna, a fim de obter a seguridade social. Uma das cenas mais delirantes é o momento em que a mulher do primeiro desenterra o braço do morto. E ao iniciarem uma discussão, o marido bate na mulher com o braço do morto! Na época, Eid deu o nome dessa linha expressiva de “teatro das desilusões”.

Representação e delírio

Estamos no plano de um teatro concebido como representação, porém fazendo-a passar por um delírio. E nisso o ator tem uma tarefa muito importante: ele será é responsável pela criação de uma atuação também delirante e que possa jogar com o polo da encenação – seja com os tipos, seja com as personas. Porém, esse plano autoral de dramaturgo e diretor (que por vezes coincidem em Eid) tem também um componente lúdico. E ele é essencialmente irônico e patético. Daí a paixão de Eid pelos antigos circos populares, com suas cenas cômicas e macabras. Sem falar de Fellini e de outras referências do cinema, lugar privilegiado para a ficção. Então, estamos num teatro de figuras e o ator deve ser capaz de lidar com isso.

Todo teatro é um teatro de figuras? A cena contemporânea é marcada também por outros tipos de actantes que não oactante-máscara. Como diz Bonfitto, temos ainda o actante-texto e o actante-estado. No primeiro você não se encontra com um texto passível de gerar situações dramáticas, mas sim emissões sonoras, verbais e imagísticas, acompanhadas de outras possíveis polifonias. Já no actante-estado a corporeidade passa a ser o próprio discurso da encenação:  ordem das pulsões, dos estados corporais. Não há interpretação. Temos, ao contrário, toda uma performatividade, como aponta Josette Féral. Alguém poderia dizer que todo teatro é performativo, pelo menos em certo grau (lugar da presença). Sim, mas a diferença se impõe: na performatividade há um questionamento da representação e, em linhas gerais, diria que os componentes materiais da cena (corporeidade, imagem e sonoridade, tempo e espaço)  não se comportam como um referente, ou mesmo um significante para uma significação que lhes é anterior ou posterior. O que não significa, por outra parte, que no teatro performativo não ocorra caracterização.  Pode ocorrer sim, mas esta não nem tem na representação sua âncora. Fazendo a leitura via Hans-Thies Lehmann, temos uma caracterização que não faz parte do vínculo interno entre teatro e drama (teatro pós-dramático). Há uma ruptura nessas duas instâncias, antes tão bem cimentadas que nos parecia ser um único teatro e, mais ainda, universal! Nenhum teatro é melhor do que outro. Assim como ocorre com a técnica, cada teatro agencia suas próprias visões de mundo, buscando definir-se enquanto tal.

Entretanto, a representação deve ser vista nesse teatro como  a conjunção entre a “arte do palco” e a “arte da interpretação”. Eid Ribeiro faz esses dois polos oscilarem, saírem das suas certezas e abrigarem delírios poéticos.

Porém, são as potências dessa “caixa de representação”,  juntamente com as forças dos corpos capazes de produzir figuras estranhas e, ao mesmo tempo, tão humanas, que definem a poética cênica de Eid Ribeiro. Em outras palavras: Eid não narra ou “representa”  coisas simplesmente, ele “toca” um instrumento musical: o palco. E dele extrai as imagens mais delirantes.

Potências do falso

Podemos, então, entender as exigências de Eid Ribeiro para a criação de um papel.  No Pirex vemos com clareza esse plano de figuras-tipo que os atores devem incorporar. Nesse sentido, Eid vai em direção contrária à arte da performance e do teatro performativo: não há o menor traço, no trabalho da atuação,  que não tenha em vista e como horizonte a criação de papéis. Porém, tudo isso com um jogo de sutilezas,  com o desenvolvimento de relações e aberturas para planos de lirismo e variações imprevistas. No entanto, isso não significa de modo algum que os atores não criem, não envolvam suas próprias sensações etc. Há um tipo de rigor que passa necessariamente pela dimensão interpretativa desse teatro. E que rigor é esse? O ator irá sofrer uma espécie de violação primeira. No teatro de Eid não se cria impunemente uma figura e tampouco ela se faz habitar sem uma luta carnal do ator com o seu papel. No caso de No Pirex, vemos como cada um desenha o actante-máscara definido como tipo, a ponto de acreditarmos que se encontra ali, na nossa frente,  aquele ser.

Cada ator arrasta pela cena sua máscara (ou sua figura, que é composta pelos gestos, movimentação e jogo). Há tempo de sobra para essa lentidão se instalar e Eid parece não ter pressa. Nesse sentido, ele encara as convenções tão difundidas no teatro, como a de que é preciso “acelerar o ritmo”. Mas há os momentos de puro jogo, que tanto reverenciam a comédia muda como as técnicas circenses, incluindo técnicas de clown. Como, por exemplo, na cena em que os atores do Armatrux mostram suas técnicas, jogando os pratos a uma grande distância, ou quando manipulam torres imensas de copinhos. Nesses momentos, mais do que teatro físico, temos um jogo circense e poético. Há sim um teatro físico, em certo grau, assim como de traços performativos. Isso porque, como dito antes, o drama que Eid configura ancora-se numa tradição não-dramática, ou pré-dramática: o teatro popular do circo. E é contra a dominação cultural imposta ao ato de representar que o teatro de Eid Ribeiro se rebela. É assim que ele monta, na década de 90, um espetáculo musical que presta  homenagem a Oscarito e Grande Otelo (o último trabalhado por Mauricio Tizumba numa grande interpretação), em que os dois faziam o papel de Romeu e Julieta. Ironia, escracho e deboche: Eid não pode ver o discurso burguês possuindo o corpo de atores. Por isso ele enfatiza o  ridículo, o patético e, para não cair no riso confortável, convoca o sombrio.

Estamos diante das potências do falso. Ou do simulacro, se quiserem. E nisso Eid Ribeiro é muito habilidoso. Porém, como dizia, o ator deve saber encarnar os papéis que irão realizar esse jogo. E isso significa: capacidade de incorporação que vai do lirismo ao deboche, conforme a cena, conforme o espetáculo. Mas tudo por uma via muito sóbria de composição. Sobriedade esta que me interessa muito, como pesquisador e criador. Não para ser sofrida no plano interpretativo, mas noutro, de uma poesia corpórea, como diz Renato Ferracini.  Citemos, nesse aspecto, Dario Fo: um ator deve, como um bom nadador, não espirrar água fora da piscina.

Por isso, nada pode sobrar no trabalho do ator. No teatro de Eid ele irá se colocar a serviço desse papel, dessa figura que emerge das sombras e por vozes some dentro delas. Este poder de aparecer é sempre, para Eid Ribeiro, um poder de parecer. Nisso, Eid vincula-se ao teatro dramático, um teatro de representação. Mas quando deflagra nessa tarefa um universo lúdico, irônico, patético, com inspirações em Beckett e no teatro popular brasileiro e circense, Eid afasta-se do teatro dramático, fazendo girar o carrossel das figuras estranhas(ressonâncias com Kantor?) e delirantes. Mas novamente ele  as  insere nesse teatro dramático, pois há sim um jogo com as perspectivas ilusionistas desse teatro. E, mais uma vez, ele brinca com isso, trazendo o plano do lúdico-atoral à frente, criando distanciamentos cenográficos, pequenas máquinas para o palco à italiana etc. O seu afastamento do teatro dramático, arrisco-me a dizer, está mais em função do que nele ficou de  arte burguesa da representação, do que uma opção por vias performativas. No entanto, a ilusão do palco, como se pode notar em No Pirex joga com os códigos de visibilidade  próprios desse universo. No final das contas, a paixão de Eid é pelas potências que podem fazer do palco uma poiesis. O teatro é imagem, quase cinema, uma “máquina rude de fazer aparecer”. Eid conhece bem as artimanhas que submetem os corpos no palco, tornando medíocre a representação. Melhor dizendo, não conseguindo empreender sua aventura estética. E ele sabe muito bem por que códigos os atores, como seres humanos assustados diante da vida, resolvem escamotear-se em máscaras mais rígidas, justamente quando pisam em cena. E isso pode ser encontrado, de modo mais perverso, nos teatros que se pretendem “cultos”. Um dos riscos, por exemplo, seria o de voltar-se para a “pessoa”, ressaltando seu narcisismo. Desse modo, um ator deve saber, antes de tudo, interpretar um papel e construir o actante-máscara.

E entre outras cenas igualmente belas, há uma que é uma pequena joia, essa sim de um teatro físico que cabe a este espetáculo inventar para si: quando a dona da casa entra em cena com uma faca enfiada na sua corcunda pela cozinheira (numa trama macabra dos empregados e na revolta contra os proprietários), encaminha-se para o garçom mais velho e, sendo que este tira um pequeno lenço vermelho e a toureia numa gestualidade contida, numa dança sutil, até sua derrocada final.

No Pirex traz a maturidade do Armatrux. E mostra mais um encontro (o outro foi De banda pra lua) com esse poeta e diretor da cena, que é Eid Ribeiro. As questões que concernem às técnicas e aos vínculos que estas mesmas produzem (criação de um teatro dramático e ilusionista, apesar de brincar com a própria ilusão) podem não ser as mesmas de outros teatros e linguagens. E aqui, mais uma vez, temos uma arte das misturas mais impuras. E isso é muito bom.

Referências –

HEIDEGGER, Martin. A questão da técnica. In Ensaios e Conferências. Vozes Editora.

Todo teatro é um teatro de figuras? A cena contemporânea é marcada também por outros tipos de actantes que não o actante-máscara. Como diz Bonfitto, temos ainda o actante-texto e o actante-estado. No primeiro você não se encontra com um texto passível de gerar situações dramáticas, mas sim emissões e outras possíveis polifonias. Já no actante-estado a corporeidade passa a ser o próprio discurso da encenação:  ordem das pulsões, dos estados corporais. Não há interpretação. Temos, ao contrário, toda uma performatividade, como aponta Josette Féral. Alguém poderia dizer que todo teatro é performativo, pelo menos em certo grau. Sim, mas a diferença aqui é radical: na performatividade há um questionamento da representação e, em linhas gerais, diria que os componentes materiais da cena (corporeidade, imagem e sonoridade, tempo e espaço)  não se comportam como um referente, ou mesmo um significante para uma significação que lhes é anterior ou posterior. O que não significa, por outra parte, que num teatro performativo não ocorra caracterização. Porém, tais caracterizações não são não se referem a uma representação estável e não problemática. Fazendo a leitura via Hans-Thies Lehmann, temos uma caracterização que não faz parte do vínculo interno entre teatro e drama (teatro pós-dramático). Há uma ruptura nessas duas instâncias, antes tão bem cimentadas que nos parecia ser um único teatro e, mais ainda, universal! Nenhum teatro é melhor do que outro. Assim como ocorre com a técnica, cada teatro agencia suas próprias visões de mundo, buscando definir-se enquanto tal: seu modo de habitar uma duração.

Podemos, então, entender as exigências de Eid Ribeiro para a criação de um papel.  No Pirex vemos com clareza esse plano de figuras-tipo que os atores devem incorporar. Nesse sentido, Eid vai em direção contrária à arte da performance e do teatro performativo: não há o menor traço, no trabalho da atuação,  que não tenha em vista e como horizonte a criação de papéis. Porém, tudo isso com um jogo de nuances, desenvolvimento de relações e aberturas para planos de lirismo. No entanto, isso não significa de modo algum que os atores não criem, não envolvam suas próprias sensações etc. Há um tipo de rigor que passa necessariamente pela dimensão interpretativa desse teatro. E que rigor é esse? O ator irá sofrer uma espécie de violação primeira. No teatro de Eid não se cria impunemente uma figura e tampouco ela se faz habitar sem uma luta carnal do ator com o seu papel. No caso de No Pirex, vemos como cada um desenha o actante-máscara, que no caso não é uma persona, mas um tipo, a ponto de acreditarmos que se encontra, ali na nossa frente, aquele ser.

Cada ator arrasta pela cena sua máscara. Há tempo de sobra para isso e Eid parece não ter pressa. Nesse sentido, ele encara as convenções tão difundidas no teatro, como a de que é preciso “acelerar o ritmo”. Mas há os momentos de puro jogo, que tanto reverenciam a comédia muda como as técnicas circenses, incluindo técnicas de clown. Como, por exemplo, na cena em que os atores do Armatrux mostram suas técnicas, jogando os pratos a uma grande distância, ou quando manipulam torres imensas de copinhos. Nesses momentos, mais do que teatro físico, temos um jogo circense e poético. Há sim um teatro físico, em certo grau, assim como de traços performativos, porque o drama que Eid configura ancora-se numa tradição não-dramática, ou pré-dramática: o teatro popular do circo. Toda uma linha que, juntamente com o melodrama, foi enterrado pela triunfante linguagem da novela e da sua verossimilhança burguesa. É contra essa dominação cultural e estética que o teatro de Eid Ribeiro se rebela. É assim que ele monta, na década de 90, um espetáculo musical que presta  homenagem a Oscarito e Grande Otelo (o último trabalhado por Mauricio Tizumba numa grande interpretação), em que os dois faziam o papel de Romeu e Julieta. Ironia, escracho e deboche: Eid não pode ver o discurso burguês possuindo o corpo de atores. Por isso ele enfatiza o  ridículo, o patético e, para não cair no riso confortável, o sombrio.

Estamos diante das potências do falso. Ou do simulacro, se quiserem. E nisso Eid Ribeiro é muito habilidoso. Porém, como dizia, o ator deve saber encarnar os papéis que irão realizar esse jogo. E isso significa: capacidade de incorporação que vai do lirismo ao deboche, conforme a cena, conforme o espetáculo. Mas tudo por uma via muito sóbria de composição. Sobriedade esta que me interessa muito, como pesquisador e criador. Não para ser sofrida no plano interpretativo, mas noutro, de uma poesia corpórea, como diz Renato Ferracini.  Citemos, nesse aspecto, Dario Fo: um ator deve, como um bom nadador, não espirrar água fora da piscina.

Por isso, nada pode sobrar no trabalho do ator. No teatro de Eid ele irá se colocar à serviço desse papel, dessa figura que emerge das sombras e por vozes some dentro delas. Este poder de aparecer é sempre, para Eid Ribeiro, um poder de parecer. Nisso, Eid vincula-se ao teatro dramático, um teatro de representação. Mas quando deflagra nessa tarefa um universo lúdico, irônico, patético, com inspirações em Beckett e no teatro popular brasileiro e circense, Eid afasta-se do teatro dramático, fazendo girar o carrossel das figuras estranhas(ressonâncias com Kantor?) e delirantes. Mas novamente ele  as  insere nesse teatro dramático, pois há sim um jogo com as perspectivas ilusionistas desse teatro. E, mais uma vez, ele brinca com isso, trazendo o plano do lúdico-atoral à frente, criando distanciamentos cenográficos, pequenas máquinas para o palco à italiana etc. O seu afastamento do teatro dramático, arrisco-me a dizer, está mais em função do que nele ficou de  arte burguesa da representação, do que uma opção por vias performativas. No entanto, a ilusão do palco, como se pode notar em No Pirex joga com os códigos de ocultamento  próprios desse universo. No final de contas, a paixão de Eid é pelas possibilidades poéticas do palco, que poderia também ser chamado de “máquina rude de mostrar”. Eid conhece bem as artimanhas que submetem os corpos no palco, tornando a representação uma coisa doméstica, não problemática. Melhor dizendo, não estética. Aqui, arte não é vida. É outra coisa, mas não é vida comum. Há toda uma mimese que não se comporta como imitatio: mas que imita a vida em sua produtividade. E no caso do teatro de Eid esta se encontra, de fato, na representação.  A emissão vocal e gestual de um ator no palco envolve um embate com a representação. Quando esta tarefa não é bem compreendida, o ator tende a se dividir em dois: carrega toda a implicação do mundo, sua pragmática, que no palco torna-se um código não consciente; e acredita que sua emissão é “verdadeira”. Neste caso, confunde-se hábito com arte.

Um teatro físico?

Não diria, no caso de No Pirex. Mas talvez essa questão não tenha a menor importância para o espetáculo. No entanto, é uma questão que têm seu próprio horizonte. O teatro físico supõe o corpo manifesto, no qual o mesmo não é capturado pela dimensão interpretativa. A fábula constrói-se corporalmente, é fato, mas dentro de uma área de problemas que se volta muito mais para a força de um papel, como exposto neste post. Tudo isso dentro da ambivalência que é esse teatro de figuras sombrias.

Há jogo físico e corporal o tempo todo, mesmo dentro da lentidão que é proposital. E entre outras cenas igualmente belas, há uma que é uma pequena jóia, essa sim de um teatro físico que cabe a este espetáculo inventar para si: quando a dona da casa entra em cena com uma faca enfiada na sua corcunda pela cozinheira (numa trama macabra dos empregados e na revolta contra os proprietários), encaminha-se para o garçom mais velho e, sendo que este tira um pequeno lenço vermelho e a toureia numa gestualidade contida, numa dança sutil, até sua derrocada final.

No Pirex traz a maturidade do Armatrux. E mostra em mais um encontro (o outro foi De banda pra lua) com esse poeta e diretor da cena, que é Eid Ribeiro. As questões que concernem às técnicas e aos vínculos que estas mesmas produzem (criação de um teatro dramático e ilusionista, apesar de brincar com a própria ilusão) podem não ser as mesmas de outros teatros e linguagens. E aqui, mais uma vez, temos uma arte das misturas mais impuras. E isso é muito bom.

Por Luiz Carlos Garrocho

Professor, pesquisador, diretor de teatro e filósofo.

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