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Teatro da representação e teatro da repetição, por Deleuze

Cena da peça “Artists should Croak”, de Tadeusz Kantor. Premiere em Junho de 1985 – Nuremberg

“Kierkegaard e Nietzsche estão entre os que trazem à Filosofia novos meios de expressão. A propósito deles, fala-se de bom grado em ultrapassagem da Filosofia. Ora, o que está em questão em toda a sua obra é o movimento. O que eles criticam em Hegel é a permanência no falso movimento, no movimento lógico abstrato, isto é, na ‘mediação’. Eles querem colocar a metafísica em movimento, em atividade, querem fazê-la passar ao ato e aos atos imediatos. Não lhes basta, pois, propor uma nova representação do movimento; a representação já é mediação.”

“Ao contrário, trata-se de produzir, na obra, um movimento capaz de comover o espírito fora de toda representação; trata-se de fazer do próprio movimento uma obra, sem interposição; de substituir representações mediatas por signos diretos; de inventar vibrações, rotações, giros, gravitações, danças ou saltos que atinjam diretamente o espírito. Esta é uma ideia de homem de teatro, uma ideia de encenador – avançado para seu tempo. É neste sentido que alguma coisa de completamente novo começa com Kierkegaard e Nietzsche. Eles já não refletem sobre o teatro à maneira hegeliana. Nem mesmo fazem um teatro filosófico. Eles inventam, na Filosofia, um incrível equivalente do teatro, fundando, desta maneira, este teatro do futuro e, ao mesmo tempo, uma nova Filosofia.”

“O teatro é o movimento real e extrai o movimento real de todas as coisas que utiliza. Eis o que nos é dito: este movimento, a essência e a interioridade do movimento, é a repetição, não a oposição, não a mediação. Hegel é denunciado como aquele que propõe um movimento do conceito abstrato em vez do movimento da Physis e da Psique.”

“Quando (…) se diz que o movimento é a repetição, que é este nosso verdadeiro teatro, não se está falando do esforço do ator que ‘ensaia’ enquanto a peça ainda não está pronta. ”

“O teatro da repetição opõe-se ao teatro da representação, como o movimento opõe-se ao conceito e à representação que o relaciona ao conceito. No teatro da repetição, experimentamos forças puras, traçados dinâmicos no espaço que, sem intermediário, agem sobre o espírito, unindo-o diretamente à natureza e à história; experimentamos uma linguagem que fala antes das palavras, gestos que se elaboram antes dos corpos organizados, máscaras antes das faces, espectros e fantasmas antes das personagens – todo o aparelho da repetição como ‘potência terrível’.”

“É porque nada é igual, é porque tudo se banha em sua diferença, em sua dessemelhança e em sua desigualdade, mesmo consigo, que tudo retorna. Ou melhor, tudo não retorna. O que não retorna é o que nega o eterno retorno, que não suporta a prova. (…) É o negativo – porque a diferença aí se subverte para se anular. É o idêntico, o semelhante e o igual – porque eles constituem as formas da indiferença. É Deus, é o eu como forma e garantia da identidade. É tudo o que só aparece sob a lei do ‘Uma vez por todas’, inclusive a repetição quando submetida à condição de identidade de uma mesma qualidade, de um mesmo corpo extenso, de um mesmo eu…”

“A arte não imita, mas isso acontece, antes de tudo, porque ela repete, e repete todas as repetições [das repetições mecânicas às não mecânicas – repetições que produzem a diferença], a partir e uma potência interior (a imitação é uma cópia, mas a arte é um simulacro. Até mesmo a repetição mais mecânica, mais cotidiana, mais habitual, mais estereotipada encontra seu lugar na obra de arte, estando sempre descolada em relação a outras repetições com a condição de que saiba dela extrair a diferença para estas outras repetições. Isto porque não há outro problema estético a não ser o da inserção da arte na vida cotidiana.”

“A repetição é a potência da linguagem, e, em vez de se explicar de maneira negativa, por uma insuficiência dos conceitos nominais, ela implica uma Ideia de poesia sempre excessiva.”

Gilles Deleuze, Diferença e repetição. Tradução de Luiz Orlandi e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1988 1a edição, 2a edição, 2006.

Referências –

  • Crédito da imagem: http://www.porta-polonica.de/en/Atlas-of-remembrance-places/tadeusz-kantor-nurnberg – Escolhi o teatro de Kantor porque ele traz a potência dessa repetição que é uma repetição não do mesmo, mas da diferença.
  • Obs. Os trechos extraídos, aqui organizados em parágrafos e entre aspas não estão no original na mesma sequência.

 

 

 

 

 

Por Luiz Carlos Garrocho

Professor, pesquisador, diretor de teatro e filósofo.

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