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Estelinha by Starlight e o teatro underground mineiro dos anos 70

Uma família suburbana, um porão e um grupo gay

Primeira metade dos anos 70. Fui convidado para assistir a um espetáculo que eu não poderia perder: Estelinha by Starlight. A direção é de Ronaldo Brandão, um crítico de cinema que se dedicava cada vez mais ao teatro. No elenco atuavam Luís Otávio Brandão, seu irmão, Geraldo Bonifácio,  Deuslene Mattos e o próprio Ronaldo.

No caminho, Eid Ribeiro, que fizera o convite, preparava-me para o que iria assistir: algo muito distante do teatro até então praticado. O espetáculo acontecia no porão de uma casa, no Bairro de Santa Efigênia, em  Belo Horizonte. Os atores moravam lá, eram gays e a cena trazia vestígios dos embates existenciais e ideológicos dessa opção.

Entramos. Era uma pequena sala. Nenhum cenário ou ambientação especial. Sentamos num colchonete ao nível do chão com almofadas, muito característico, na época, do despojamento underground. E começam as ações. Dois atores que faziam papeis femininos entravam em cena: Luis Otávio era a filha e Geraldo Bonifácio a mãe. Descobri, aos poucos, que a moça atraia os namorados para que a família pudesse matá-los, fazer pastéis de carne e vendê-los na vizinhança.

Metalinguagem

Em determinado momento entrava Deuslene, de modo triunfante, que colocava um disco na vitrola e dançava. Lembro-me de poucas coisas, mas fiquei tão envolvido quanto suspenso no meu juízo estético. Que teatro era aquele que acontecia ali, diante de mim, num cenário em que eu, como público, estava dentro dele?

Mais tarde, Eid Ribeiro comentou ser o espetáculo um trabalho de  metalinguagem: eles encenavam o próprio sofrimento e, de dentro e de fora, o comentavam. Mas sem o viés de um distanciamento convencional. Ou seja, explicitado em quebras de personagens, em epicização da fala etc. No entanto, havia uma ironia e uma autoexposição que se misturavam. Você não sabia até onde a encenação tinha a ver com as vidas pessoais dos atores. Ou se eram somente  as impressões geradas pelo papel. Na verdade, algo de invisível sobre as primeiras se fazia visível sobre as últimas, mas raspado com uma velha faca afiada de cozinha. Luiz Otávio, especialmente, me impressionava muito sobre esse aspecto. Ele mostrava o que sofria, mas o que sofria era um comentário do que mostrava. E o tom de comédia do texto era tragado por uma violência crítica do universo kitsch de uma família suburbana de classe média.

Não havia nenhum desespero pessoal na atuação. Pois, como diz Peter Brook, em cena a maior confissão pode ser a maior falsidade. Você via maestria, apesar das drogas, é claro. Porém, não se notava esse “derrame emocional”, como é muito comum quando se quer expressar uma ferida íntima. Esmero técnico, jogo e deboche expressando uma relação sutil entre as paixões e os signos teatrais.

Outro modo de atuar: a nervura dos corpos expostos

Em contrapartida, não havia em Estelinha by Starlight aquele modo de atuar  somente “do ombro para cima”, como era vigente no teatro, e mesmo em grande parte do teatro político, porém discursivo, da época.  Um dos resultados disso era a famosa “voz empostada”.  Não veja nisso um julgamento dos trabalhos interpretativos mais realistas, principalmente aqueles que mostravam uma retórica contundente. Pelo contrário, num cotidiano de poucas opções existenciais e estéticas, vivendo sob a ditadura militar e a hegemonia da televisão, com toda uma libido reprimida da classe média grudada nos aparelhos de suas salas de visita, o teatro era um misto de lugar sagrado e de arena viva e real. Era também um espaço de formação política e intelectual. Estelinha, por sua vez, sob a direção de Ronaldo Brandão, instalava outra realidade: marginal, sem composturas e de uma poética aguda.

Importa, porém, que se faça a seguinte distinção: aparecia ali algo totalmente diverso na encenação, no modo de atuar, na relação com o público e, por fim, no entendimento do que pode ser uma experiência de teatro.  Havia, claramente, uma aposta em conteúdos marginais, que estavam fora da racionalidade e dos modos hegemônicos de se colocar no mundo. Toda uma nervura dos corpos expostos, que não são apenas suportes de um texto literário.  Eid Ribeiro, aliás, já era um diretor e um encenador que iria renovar o teatro mineiro, trazendo uma carnalidade para a cena, fazendo do ato teatral uma explosão contida, um rito assassino e imemorial. Ronaldo Brandão, com aquela montagem, adentrava nas regiões mais sombrias da alma, expondo tanto a fragilidade dos seres ficcionais quanto a dos corpos.

É necessário contextualizar a rebeldia de Estelinha by Starlight, na direção de Ronaldo Brandão. Este diretor, influenciado pelo cinema e apaixonado por Brecht, já havia apresentado espetáculos cênicos de visualidade, cenografia e interpretação, com alguns traços de lírico e épico (sem ser discursivo). Exemplo disso foi Baal: num cenário construtivista realizado por Raul Belém de Machado, você tinha elementos de luz, volume e poesia, assim como elementos que poderiam ser creditados ao plano de uma narrativa visual. Mas em Estelinha, assim como em Dorotéia, de Nelson Rodrigues,  que realizara depois, a aproximação entre vida e teatro se fazia, como em muitas criações cênicas da época, mais próxima e, também, por vias complexas. Nesta última peça, apresentada no palco do Teatro Marília, atores gays, sob o efeito de drogas, interpretavam as mulheres, sendo que Ronaldo fazia a tirana Dona Flávia. Todos utilizavam máscaras chinesas, empunhadas pelas mãos. Ao falar, usavam a máscara na frente do rosto, tirando em seguida. Havia a impressão de que estávamos no convés de um navio  que oscilava a ponto de virar.

No teatro realista não cabe a um ator viver sua opção homossexual, não sendo viável fugir ao aspecto interpretativo dos papéis, sob a pena de ser um mau ator. Com Ronaldo Brandão e sua trupe, no período que cobre a década de 70, a homossexualidade era também tematizada, como dado concreto e matéria cênica, sem tornar-se necessariamente assunto ou tema. E isso ocorria numa época em que a “cultura do desbunde”  convivia com uma violenta repressão. O grupo de atores relatava, muitas vezes, agressões verbais e físicas sofridas nos bares da cidade, bastando para isso somente a presença assumida nesses ambientes. Sofriam a violência tanto do regime e da polícia, quanto dos seus “iguais”, isto é, das pessoas comuns que frequentavam esses lugares.

Faz-se necessária uma pausa para falar de Geraldo Bonifácio. Era um ator estranho. Na vida real, digamos assim, era um enfermeiro e levava no pescoço um crucifixo e vivia uma paixão obstinada por Marylin Monroe. Considerava-se a própria. Há um filme de Paulo Laborne sobre Geraldo travestido de Marylin. E possuía um tempo lentíssimo. Estelinha by Starlight, na direção de Ronaldo Brandão, era algo inusitado: uma mistura de  brutalidade e sublimidade musical e cênica. O que me vem à mente é o feminino terrível de que fala Artaud.

Depois das cenas na sala de visitas, fomos conduzidos a um quarto. Ronaldo Brandão era o pai e  estava com as calças arriadas até metade das pernas, com uma máscara de gorila. Uma cena que, no mínimo, constrangia. Você estava num quarto, com mais algumas poucas pessoas, diante de um corpo naquela situação.

Um teatro no “lugar específico”

Era o que chamamos hoje de um “teatro no lugar específico”, ou de “teatro no espaço encontrado”. Um diálogo com a materialidade cênica que passa a fazer parte da linguagem. O  teatro como lugar de encontro, no qual um ato poético se dá diante do público, no caso quase à “queima roupa”. Todo um contexto de experimentação se dava ali, em Estelinha by Starlight.

Num teatro dessa natureza, você não consegue dissociar o lugar da apresentação da textualidade cênica. Talvez esta não fosse uma preocupação de Ronaldo Brandão. Mas, de fato, a linguagem estava posta. Não é que o texto literário se modificava, mas sim que a encenação deixava de ser totalmente deduzida deste. Daí a importância e o aspecto inovador desse “teatro no lugar específico”.

Tudo aquilo me impressionou muito. Nunca imaginaria que poderia haver um teatro fora dos palcos. Quanto mais uma cena realizada dentro de uma casa, no mesmo lugar onde moravam os atores e que pudesse ter algo com a vida das pessoas. Você entrava num espaço íntimo, privado, mas que era também público. Ali, acontecia uma encenação. Observo que não era tanto a história que me prendia, mas a proximidade, o fato de estar dentro do cenário, a presença daqueles corpos e gestos, a poética das falas, enfim, toda uma concretude exposta. Enfim, toda uma duração compartilhada.

Proibição

O texto de Estelinha by Starlight é de Vicente Pereira (1950-1993 ) que, além de dramaturgo, foi cenógrafo, figurinista, ator e artista plástico. Colaborou em diversos programas de TV e escreveu roteiros de cinema.  Suas peças e esquetes expunham aspectos kitsch da cultura e da classe média brasileira, misturando melodrama e comédia popular. Faço observar que a Enciclopédia Itaú Cultural, de onde os  dados  sobre o autor foram tirados, necessita de uma pequena correção: Estelinha não permaneceu inédita, tendo sido encenada, em condições marginais,  por Ronaldo Brandão em Belo Horizonte, no ano de 1976. De fato, talvez tenha sido uma temporada tão curta e marginal  que não possua qualquer registro oficial. Inclusive, porque foi proibida.

Depois da apresentação, sentamos e conversamos com o elenco e o diretor. Assim mesmo, no porão de uma casa, literalmente no mundo underground, debaixo da ditadura, falando e trocando ideias sobre o que havíamos assistido. Lembro-me que, na conversa, Ronaldo estava buscando uma experiência radical do teatro. Afirmou que  o teatro vigente em Belo Horizonte era um “teatro branco”. Ele queria um “teatro negro”.

Então, a peça foi proibida pela censura da ditadura militar e o espetáculo, em decorrência ou acréscimo, também foi impedido. Ronaldo e trupe ainda se apresentaram em casas de amigos, uma média de doze vezes. Mas, devido à proibição de exibição pública, não puderam seguir adiante. Acabou ali, no porão de uma casa dos anos 70, a vida de Estelinha by Starlight, com os seus pais, seus namorados assassinados e a luz mitigada, no ambiente de uma sexualidade domesticada e doentia de uma classe média conformada a tudo, mas  enlouquecida.


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Performance e máquina abstrata

Fotografia de Muybridge (1804-1906)
Fotografia de Muybridge (1804-1906)

Vez por outra estamos às voltas com a definição do que vem a ser uma performance. No  Festival de Performance de Belo Horizonte (1a edição: 2009), o tema foi assunto de discussão. Desde a Manifestação Internacional de Performance (neste ano na 2a edição), passando pelos diversos eventos e projetos (como a Zona de Ocupação Cultural, o Cabaré Voltaire, a ação Arte Expandida, provocadas pelas forças que se somaram), para não falar das inúmeras presenças de artistas e conjuntos que insistem nesse plano de criação, ocorre uma proliferação de desejos performáticos. O que é Performance, hoje? Este, o título do debate (1). Faço a seguir algumas anotações:

1. A classificação paralisa o movimento

Pensar a performance tem sido muitas vezes um exercício de parar o pensamento. Alguns debates  acabam resvalando para esse ponto. Os discursos costumam ficar aquém das potências da própria arte da performance: um expressão/manifestação que puxa uma ponta de desterritorialização da arte.

E nesse processo a performance trouxe outros modos de teorização próprios de seu plano de criação. Por exemplo, o manifesto poético. Há também produções acadêmicas e para-acadêmicas que provocam novas conexões, que geram novos movimentos. Portanto, é uma diminuição do pensamento opor criação e teorização: ambos podem ser exercícios criativos e desterritorializantes: capazes de furar cercos, enganar alfândegas e mover fronteiras.

No debate citado, apareceu, entre outras coisas, a ideia de que  haveria uma “performance pura”. Não estou criticando a noção, mas quero mostrar que isso implica em conceber tal criação como possuidora de uma substância e, também, de um contorno. Não teria a performance modificado isso? Ora, “performance” é um nome  e uma infinidade de coisas. Esse nome comporta ou abriga inúmeras forças. Porém, começamos a tratá-la como uma “arte” ao lado da “dança”, do “teatro” ou da “poesia”, para dar alguns exemplos. Esquecemos que isso é, na verdade, a consumação de novas fronteiras, entre as quais a performance estaria ladeada.

Mais do que definir-se como uma substância, a performance move-se na direção de uma arte expandida (a abertura daquilo que pode ser arte, de quem pode fazer arte, e  em que condições recepção artística pode se dar). Assim, não estamos numa fronteira chamada “performance” que negociaria ou não com outras fronteiras, chamadas de “teatro”, “dança” etc. Estamos, literalmente, sem fronteiras.

Isso não significa que não exista uma arte da performance. E de que esta não seja passível de definição. Mas, como nos mostram Deleuze e Guattari, um conceito pode tanto ser concebido como um jogo de encaixes, com seus contornos delimitadores, ou como movimento, nomadismo, nos quais se encontram as zonas de vizinhança e a  variação interna de seus subconjuntos que  estabelecem, por sua vez, novas vizinhanças.

Christina Fornaciari, performadora que participou do Festival e do debate, fez a seguinte observação numa mensagem de correio eletrônico:

“Hélio Oiticica escreveu em um dos penetráveis de “Tropicália”, obra que deu nome ao movimento: a pureza é um mito. Em performance, essa máxima vale mais que qualquer outra. O trânsito de linguagens dentro da linguagem da performance é livre, constante e diversificado. E é bom que seja assim.”

Lembremos-nos do belo livro de RoseLee Goldberg (2006), A arte da performance.  É inegável que inúmeras instituições, espaços e programas procuram, hoje, difundir experimentos, práticas e pesquisas sobre a performance. RoseLee a chama de “vanguarda da vanguarda”. Na sua visão, trata-se de “um meio de expressão maleável e indeterminado, como infinitas variáveis, praticado por artistas impacientes com as limitações das formas mais estabelecidas e decididos a por sua arte em contato direto com o público (ix)”.

E o termo “performance” passou, também, a tomar outras significações. Há todo o campo intitulado nos EUA de Performance Studies, liderado por Richard Schechner (1988), abrangendo as dimensões rituais e simbólicas da ação nas diversas culturas etc. Dos esportes às culturas arcaicas, tudo pode ser performance. Já não estamos no campo exclusivo de uma arte da performance. Porém, uma dos traços dessa vertente de criação é a convivência, quando não a inspiração e mesmo apropriação das culturas arcaicas. Em vez da atitude modernista de superação do passado, temos a sua reintegração sobre um plano de futuro, de inovação constante. Podemos lembrar, nesse aspecto, para dar somente dois exemplos, de Joseph Beuys e Renato Cohen.

Sempre se fez performance? As manifestações dos dadaístas surgiram não como necessidade de delimitar uma nova demarcação territorial, mas sim de fazer fugir o território da arte! Com a eclosão das novas vanguardas nos EUA, convencionou-se a  chamar de performance art toda uma multidão de manifestações artísticas que não se enquadravam no sistema das artes e que, de certo modo, retomavam os primórdios dadaístas e futuristas, principalmente com a eclosão das novas vanguardas,  no pós-2a Guerra.  Eram ocupações/intervenções do presente, enfrentamentos de todo um sistema de arte e de seus aspectos dominantes. E o happening, por exemplo, não foi um termo cunhado por Allan Kaprow. Ele simplesmente denominou sua estreia marcante com um evento intitulado 18 Happenings.

Ken Dewey, que viveu a irrupção do happening nos EUA, acredita que Allan Kaprow teria inventado a “forma” que seria uma continuidade de experimentações artísticas, passando pelos dadaístas, por Duchamp etc. Mas não seria, na sua visão, apenas uma formatação, mas sim uma nova força: Ken Dewey diz que os dadaístas não teriam realizado a quebra total com a hierarquia do objeto. No entanto, os artistas que  criaram happenings não se identificavam de modo algum com o rótulo. Mas no nome pegou. Depois, nos anos 70 e 80, performance passou a se diferenciar de happening.  Ou pelo menos, passou-se mais a estudar um campo autônomo, em relação às outras artes, que seria justamente o da arte da performance. Por esse viés, portanto, teríamos uma nova “forma” artística ao lado das outras “formas” artísticas? Mas estaríamos ainda assim diminuindo as potências das colocações de Ken Dewey, se colocamos  performance num novo conjunto. No mesmo texto, Ken Dewey nos fala de uma oficina que havia realizado, tendo por mestres a bailarina e coreógrafa Ann Halprin (uma das pioneiras da dança improvisacional nos EUA) e John Cage, com os quais teria, antes de tudo, aprendido a compor com o acontecimento. Insisto neste aspecto: a performance é um programa experimental que procura produzir  pontas de desterritorialização absoluta da arte.

Quando tentamos comparar a performance com isso ou aquilo, estabelecendo contornos em relação às outras artes, estamos colocando as questões em termos de A=A que não B. De fato, esse pensamento funciona, tem seus vínculos de desejo, produz seus agenciamentos maquínicos. Ma há outros modos de funcionar com o desejo: deparamo-nos, por exemplo, com o paradoxo, com as lógicas que não partiriam do princípio do terceiro excluído etc.

Colocar a performance ao lado de outra arte, tomando esta como um núcleo fechado e duro, é desacreditar  a força a que veio: inserir uma ponta de desterritorialização no fazer artístico. O que é dança? O que é teatro? O que é arte? Você está em busca de uma definição via delimitação de fronteiras, ou se dispõe a se colocar em movimento? Se não nos interessa responder o que é uma coisa e outra, porque eu deveria elucidar o que é performance?

Arlindo Machado (2007) mostra que muitos pensadores, críticos e ensaístas esforçaram-se  para definir os chamados núcleos duros (substanciais) das artes e as áreas de superposição.  Haveria, assim, a partir de tais núcleos substanciais, a possibilidade de cruzamentos, combinações, áreas comuns, mas sempre a partir de suas periferias. Mais recentemente, alguns descobriram que essa é uma operação não só infrutífera, mas também que não daria conta das novas realidades, justamente porque as fronteiras se desmancham e as artes se contaminam mutuamente. A análise transdisciplinar tem sido uma ferramenta interessante (NICOLESCU, 2005). Pensamos não por uma negociação entre áreas ou pela soma das mesmas, mas por dinâmicas de atravessamento e transformação contínua.

Deleuze e Guattari, que nos disponibilizaram  essa “caixa de ferramentas” que são, entre tantos outros, os conceitos de territorialização, desterritorialização e reterritorialização (que andam juntos, sendo inseparáveis), diziam não ser mais pertinente, por exemplo, o corte na música entre tonalidade atonalidade. O que importa é a música. Deleuze diz que se trata de pensar “as forças não sonoras do cosmos que sempre agitaram a música”. O mesmo não poderia se concebido para a performance, para o teatro, a dança etc.? Ou seja, ver o poder desterritorializante das artes em vez de procurar definir moldes e núcleos duros de definição?

Isso colocado, como falar da performance como arte pura?

Na discussão, Otávio Donasci apresenta a noção de nuvem para definir performance. Uma nuvem não tem contornos definidos. Pode ser o bom começo de um exercício menos molarizado. Christina Fornaciari, performadora que participou do debate, lembra numa mensagem de correio eletrônico a diversidade própria do campo: a performance tem também a função de “reunir interesses difusos, mesclar sem fronteiras os que andam em sentidos opostos, ser porto para gente que vem de todo lugar.”

2. A máquina abstrata

Nessa brecha, tomo ainda a ferramenta conceitual de Deleuze e Guattari, que é a máquina abstrata. Outro dia, conversava com o parceiro Marcelo Kraiser sobre o tema (a necessidade de classificação), quando participei de outro debate. Marcelo lembrou-me desse conceito de máquina abstrata: são traços de atravessamentos inesperados, traços de narrativas, de dinheiro, de vontade de potência ou  vontade de poder, de agitação molecular ou de produção de contornos rígidos, de representação e de autoria e de desconstrução de ambos ou de um só…

Antes de tudo, é necessário lembrar que uma máquina abstrata, como os outros conceitos de Deleuze, não são metáforas, mas literalidade. A máquina abstrata é uma prática, um experimento.

Não se trata de um conceito da moda. Do último conceito. Do pós isso ou aquilo. É uma análise de como funcionam os vínculos desejantes: os agenciamentos maquínicos. Uma técnica, dizem Deleuze e Guattari, supõe sempre um agenciamento maquínico. Aquilo que vincula ou desvincula e que produz um sujeito ou o desmancha…

É máquina não concreta, mas possui realidade. Não se identifica com formas e substâncias, produzindo antes intensidades e matérias não formadas. Elas compõem um plano de consistência, mas podem ser datadas e nomeadas. Deleuze e Guattari falam de Máquina-Bethoven. Não se refere a máquina abstrata a uma pessoa (o sujeito Beethoven), mas este artista é que se refere às agitações moleculares pelas quais sua música (sua prática-pensamento) foi afetada. Mas uma máquina abstrata pode tanto produzir mutação e singularidade quanto estratificação, molaridade e sobrecodificação.  Depende das linhas de desterritorialização e de reterritorialização que a atravessam. Assim, há máquinas que abrem agenciamentos (liberam partículas, produzem singularidades, geram encontros inesperados e sínteses disjuntivas e inexplicáveis) e que fecham agenciamentos (realizam totalizações, homogeneizações, estratos classificatórios etc.).

Não temos a performance, mas performances: uma e outra, aquela e esta, que são máquinas abstratas comportando traços que atravessam nossas experiências, forças que ocupam e a exprimem. A performance não é, portanto, mais um território ao lado de outros territórios. Não é mais um nicho histórico de desenvolvimento das artes. É um campo de forças de experimentação. E, no entanto, abriga, como máquina abstrata, linhas desterritorializantes que se seguem às linhas de reterritorialização e, também, ainda potencialmente, às linhas nas quais vocês se reterritorializa na desterritorialização.

Insisto que nos encontramos com o plano da experimentação artística. E não foi justamente  o performer Dick Higgins quem definiu a performance como intermídia? O pesquisador e criador Fernando Villar (2004) observa que este entremeios “não é governado por regras; cada trabalho determina seu próprio meio e forma, de acordo com a necessidade.”

Passa-se, sempre, por um campo de performatividade em arte. Mas isso é tão amplo e variado quanto indefinido. Não pode, por si só, definir um valor. Sou artista de performance! O que isso quer dizer? O mesmo que sou bailarino? Sou ator? Sou poeta? Nada nos impede de agregar esses nomes a nossas experiências ou profissões. Mas ainda, assim, fora um sentido classificatório, quer dizer muito e pouco ao mesmo tempo. Você me dirá que, para escrever um projeto ou se inscrever num festival, mostra etc. terá que definir: teatro disso ou daquilo, performance etc. Ainda assim não estamos num plano de movimento do pensamento, apenas numa tarefa de colocar etiquetas em coisas e eventos. Uma categorização.

3. Performance, ética e política

Confunde-se a questão ética com a do dever (kantiano). De fato, assim prevalece em muitos círculos e circuitos. E quando você coloca o problema é rapidamente conduzido para o que “pode” ou “não pode”, para o que você “concorda” ou “não concorda”. Se você não se deslocar mais rápido ainda será capturado numa visão moralista.

A cada momento, para negar ou ocultar os agenciamentos maquínicos, inventam-se instâncias transcendentes: “arte”, “a arte social”, “arte pura”, “a vontade superior do artista” etc. A análise da máquina abstrata pode mostrar as linhas com as quais se configura uma experiência em arte. Por exemplo: a questão de algumas performances instrumentalizarem os corpos. Qual o limite dessa instrumentalização? Argumenta-se que em tudo, e na arte não seria diferente, contratam-se pessoas. Neste caso, o argumento é deslocado para uma justificativa mediante outro fato. Ou seja, fatos justificariam valores.

Não se trata de uma oposição moral à instrumentalização dos corpos (animais ou humanos), mas sim de um combate contra a captura e a estratificação da experiência corporal na arte ou em qualquer lugar. A arte, qual seja seu topos, não é melhor nem pior que qualquer outro campo de assujeitamento ou de aprisionamento. Opor-se moralmente é recair no “dever ser”, na exigência de obrigação moral por parte dos outros. E como você não tem poder para isso, o debate é no mínimo risível. A não ser que haja uma onda indignada que aponte para questões concretas, como o caso da tortura de um cachorro numa performance, fato este que recebeu um grande volume de protestos na internet. Porém, a instrumentalização dos corpos nem sempre se dá de modo tão concreto e brutal (a dor e o sofrimento impingidos a outros seres que não podem se defender etc.). Pode ocorrer de outros modos, menos visíveis e, inclusive, com a aprovação do sistema das artes. Será necessário, para enfrentar a sutilezas dessa máquina abstrata, entrar num combate não moralista, mas ético.

Uma ética, no sentido de Espinosa, no qual trabalha Deleuze, é todo um plano de velocidades e de afectos: como isso me modifica?  Cabe, portanto, avaliar a produção  contemporânea em arte, da qual a performance tem sido o veículo privilegiado, do ponto de vista de uma ética. Que potências ou perda de potências um corpo sofre quando determinado processo ou dispositivo (Foucault) é acionado? Em síntese: qual o agenciamento maquínico?

Devemos no perguntar também porque incomoda a muitos avaliar os agenciamentos maquínicos das obras e processos de arte. Uma das respostas possíveis é porque tal análise combativa expõe as transcendências (um plano que por si só não é visível nem exposto), as capturas invisíveis, as reapropriações, as linhas ou traços de poder, de dinheiro, de expropriação dos corpos etc. Um exemplo disso é o caráter desmaterializado da obra de arte contemporânea, tomada hoje como dogma, mas cujo eixo autoral retoma de modo mais agressivo, apesar de sutil, tendo em vista o mercado.

Um combate ético não é um julgamento. É uma avaliação. Confundimos as duas coisas. O julgamento se dá a partir de um plano transcendente, de uma dívida infinita (Deleuze). A avaliação utiliza do conceito de máquina abstrata para compreender que forças estão passando ali. E tudo são forças. A arte pode ser um instrumento de avaliação também. Uma estratégia de combate.

Nesse aspecto, torna-se necessário reavaliar a performance. Como esta prática-pensamento em arte surge? Nos seus melhores momentos, a performance é o campo avançado e ao mesmo tempo de provisões em experimentação artística. De um real em variação contínua que é precisamente o da arte experimental. Um de seus maiores combates  (em algumas magníficas obras processuais que marcaram esse campo) tem sido a desconstrução das autoridades que se faziam ocultas nas obras de artes. Tadeuzs Kantor, artista de happenings, manifestos e de uma cena desterritorializante, coloca o diretor (ele mesmo) em cena. Faz o avesso, expondo a máquina-diretor e fazendo-a variar em cena, ao vivo.

No entanto, retorna-se a esses traços de poder pela via da desmaterialização da obra de arte. Explico: eu, o autor ausente, pago a você ou apenas utilizo seu corpo (já que não quero expor o meu e, como reprodutibilidade infinita de uma autoria e possibilidade de ganho não posso estar em vários lugares ao mesmo tempo) para executar determinadas tarefas. A interação do público com este corpo será necessariamente imprevisível. Corporalidade esta que não mais  se pode disciplinar como habilidade artística (o bailarino sob o domínio do coreógrafo, o ator sob o diretor, o músico sob o maestro). Na verdade, eu  o controlo como tudo aquilo que pode acontecer fora do meu controle. Ou seja, uma totalidade que não pode ocasionar em mim, autor abstrato, qualquer variação (estou a salvo de qualquer afecção). Não estou me referindo às contradições empíricas dos sujeitos criadores. Este é um falso problema, apesar de espancar sua mulher ser uma coisa no mínimo nojenta. Falso problema porque desvia da diferença de natureza: uma coisa concerne às modalidades de expropriação do outro como exigência de aparição da obra de arte. Outra coisa é diferença de grau entre os diversos agentes que confluem com seu trabalho para um trabalho de arte, mais ou menos colaborativamente, mais ou menos hierarquizados, o “preço” que pagam ou cobram para figurar em tal ou qual estância de criação.

Então, estamos diante de uma ética do combate (pela restauração da potência inventiva dos corpos) e não de uma moral da obrigação. A questão não se prende ao pagar ou não pagar profissionais, amadores, ou pessoas comuns, mas sim em saber que dignidade pode minha ação restaurar nos corpos que já se encontram desmaterializados pelas forças da supressão, do cotidiano, do dever-ser da sociedade ou da exclusão da mesma.

Por que alguns artistas contemporâneos se recusam a pensar na potência livre dos corpos? Arrisco uma resposta, pensando com Suely Rolnik, num texto intitulado Desentranhando futuros: porque se trata de uma arte cafetina. Aquela que explora o erotismo dos corpos dos outros para recapturar sua mais valia, sua alma, suas forças, tendo em vista uma estratégia de poder.

Antes de tudo, uma pequena observação sobre a discussão: muitas vezes nos submetemos aos pressupostos de uma pessoa, que acaba dominando o debate. Quem observa isso com muita perspicácia é o crítico e ensaísta Marcelo Castilho Avelar, quando analisava os debates do Festival Internacional de Teatro de 2008. Sim, passamos a andar sob os passos transcendentes (porque não visíveis e não declarados) de um ou outro debatedor. Em tudo, temos que ficar atentos, pois como disse Luca Forcucci na saída do debate, os fascismos cercam e penetram por todos os lados.

4. Arte e experimentação: performance como provisão e campo avançado

O que define a experimentação? Dizer o que a performance é e o que ela não é implica, via recorte e posterior modelização, em definir antecipadamente as variações da experiência real a partir das condições da experiência possível. O real é devir e mudança. Tomada como uma arte ao lado de outras artes, a performance torna-se apenas um molde. Nessa direção, a performance passa a ser definida pelas condições da experiência possível. Ora, eu nunca sei o que um corpo pode – qual será sua variação real. E  a performance é um dos lugares privilegiados da experimentação. Configura tanto as provisões quanto o campo avançado de toda experimentação.

Volto ao tema: o que chamamos hoje de “performance” não surgiu  com esse nome. Obviamente que os dadaístas, por exemplo, não pensavam nisso. Queriam invadir o cotidiano e demolir a formalidade que submetia as potências da arte (e da vida).

A recusa da classificação não significa a recusa da teoria. Renato Cohem (1988, 1998), para dar um exemplo, foi um dos que conseguiu realizar uma taxonomia dos procedimentos criativos working in progress/working in process. Seus textos são altamente conectivos, não um espelhamento do real. E nem tampouco uma revalidação de um molde. Ao contrário, são modulações de escritas que nos convidam/nos provocam a estudar e a criar. Outro autor que aprofundou o campo de estudos em performance (no sentido de performance art) é Michael Kirby (1984, 1997), com abordagens potentes sobre os procedimentos criativos ligados ao nascimento de um novo teatro. Haveria, na visão de Kirby, toda uma gradiente de variações entre o que ele chamava de performance matriciada e performance não-matriciada. Entre uma criação que opera nas linhas de tempo sucessivo mediante causalidades (o teatro dramático é um exemplo) e outra que opera por disjunções, relações não hierárquicas, estruturas compartimentadas etc. Não se trata de classificação, mas sim do estudo de modos compositivos e dos agenciamentos maquínicos que os mesmos operam.

performance configura-se como esse campo no qual o real está em variação contínua e do qual não podemos dizer antecipadamente como será ou como se comportará. Será chamada ainda de performance? Talvez não.

Referências:

(1) A discussão teve como condutores  Ione Medeiros, Luca Forcucci, Otávio Donasci e Ricky Seabra, com a participação de performadores do Festival e público (que, de certo modo, também performa em alguns eventos).

COHEN, Renato. Performance como linguagem: criação de um tempo-espaço de experimentação. São Paulo: Perspectiva, 1989.

______. Working in progress na cena contemporânea. São Paulo: Perspectiva, 1998.

GOLDEBERG, RoseLee. A arte da performance: do futurismo ao presente. Tradução: Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

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