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Dança Contemporânea Teatro Físico

Outro em Si e Memória Silenciosa

Foto: Andre Semenza

Faço algumas anotações sobre o espetáculo Outro em si, da Cia Sesc de Dança (Belo Horizonte, 2017), que foi dirigido por Fernanda Lippi e André Semenza, ambos do Zikzira Teatro Físico, (BH/Londres). Sendo que Fernanda Lippi assina ainda a concepção e coreografia e André a trilha sonora, que se inspiraram no livro Estrangeiros para nós mesmos, de Julia Kristeva. Deste trabalho resultou o filme de média metragem, Memória silenciosa, dirigido pelos dois artistas.

Um primeiro aspecto que me chama a atenção, refere-se à linha de leitmotiv (motivo que retorna) que me parece ser estruturante do processo coreográfico-temático de Fernanda Lippi: a paisagem desterrada, os seres que buscam incessantemente e quase inutilmente respirar numa atmosfera sufocante e, por fim, um amor para sempre perdido. E de um ponto de vista mais técnico, incluiria ainda a via dos impulsos corporais. André Semenza, como codiretor, cineasta e desenhista de sonoridades, joga com esse universo de obsessões com o qual partilha.

O filme Memória Silenciosa é mais do que um documento de registro das cenas de Outro em si. Ele introduz o olhar subjetivo da câmera, o olhar de um dos seres, que nos guia nessa ficcionalização. O que nos permite subjetivar uma experiência do acontecimento noutro plano – proporcionando uma dramaticidade de outra ordem.

Em 2005, motivado por uma pesquisa de mestrado, perguntei a André Semenza o porquê de um Teatro Físico. Ele me respondeu listando quatro itens: 1) porque não nos interessa ficar no campo da dança contemporânea, cujas criações em geral são frias, não envolvendo uma coragem por parte do performer e nem convocando suas pulsões – para nós o performer é um criador e não um mero acrobata; 2) porque o processo é colaborativo e envolve todos os criadores; 3) porque o roteiro da encenação faz-se através dos impulsos do performer; 4) porque a relação com a audiência não é fechada. Fernanda Lippi, por sua vez, me disse que ela, como coreógrafa e diretora de cena, buscava junto aos performers adentrar nas regiões em que ela não frequentaria com facilidade – aquilo que é mais obscuro para cada um de nós.

Foto Andre Semenza

Volto ao espetáculo e ao filme. Quero ainda registrar a participação de Bonfanti como desenhista de luz, parceiro sempre presente nas montagens do Zikzira. Impressiona aqui e mais uma vez como ele cria atmosferas e paisagens que acolhem e adensam as corporeidades e ações da encenação.
Quanto ao trabalho coreográfico, algumas imagens e leituras me veem à mente. Começo lembrando um texto do dramaturgo/pensador alemão Heinrich von Kleist (1777-1811), intitulado A vida das marionetes. Que recomendo com força àqueles e aquelas que se interessam pela arte do corpo/movimento – de tão belo e inspirador que é. Trata-se de um diálogo que Kleist estabelece com um crítico de dança, em que este diz, para surpresa de seu interlocutor, que os bailarinos e bailarinas deveriam estudar com afinco a arte das marionetes.

Instado a desenvolver esse pensamento, o crítico irá dizer com entusiasmo que descobrira “o caminho da alma do bailarino”, e que este se encontraria na “linha do centro de gravidade”. Por onde um corpo se precipita e ao mesmo tempo se ergue. O crítico observa que a afetação – a perda de uma força estética, posso dizer – ocorre quando a alma do bailarino/bailarina se encontra “em qualquer outro lugar que não o centro de gravidade”. Noutras palavras, quando o artista não se permite ser afectado pelas forças atuantes no encontro – no caso, a gravidade. Por isso sua expressão se tornaria, então, uma expressão afetada. O que difere, portanto, das potências oriundas dos afectos.

Por que isso me leva a pensar no processo de criação e pesquisa de Fernanda Lippi? Por três motivos: a) vejo que o par queda-suspensão está, de algum modo, presente no trabalho de Fernanda junto ao impulso corporal, que tem tudo a ver com a pulsação – com a constatação, como disse Fernanda certa vez, de que todo corpo pulsa e que cabe ao coreógrafo ajudar o bailarino/bailarina a acessar essa força; b) o par animado/inanimado que o caminho das marionetes me parece conduzir – no caso em tela, no campo ficcional, não sabemos se aqueles seres estão mortos ou se estão vivos; c) a temática presente num desses leitmotiv em Fernanda Lippi, de um ser que busca vir à tona em busca de ar e ao mesmo tempo volta a submergir, reiteradamente, quase em loop, diria.

Foto: Andre Semenza

O bailarino/bailarina exercita sim um pensamento, só que em ato. Diria que ele se dá nessa precipitação e suspensão incessantes, quando uma nova queda é um novo lugar, um novo centro de gravidade ao qual falta o apoio ou do qual o corpo se viu deslocado.

Aqui, nos deparamos com algumas das discussões sobre as desterritorializações contemporâneas em relação ao chamado passo de dança – que posso entender como a linha que faz fugir toda uma estrutura prévia de contagem do tempo. O filósofo Gilles Deleuze fala, a partir do músico Pierre Boulez, de um tempo que, divergente disso, seria um tempo não pulsado (não o confundir com a noção de pulsação acima, de vida das pulsões corporais etc.): “um tempo dito não pulsado é uma duração, é um tempo liberado da medida, seja esta regular ou irregular, simples ou complexo” – em que não se corresponde ao que seria “uma cadência métrica a todas as durações vitais” (Dois Regimes de loucos, editora 34, 2016, p. 164).

Fernanda Lippi vai lidar, no entanto, como ela disse, com um grupo de artistas que têm por formação básica e estruturante o balé clássico, com passagens de alguns deles pelo contemporâneo. Com toda uma formação, pode-se dizer, de modo mais geral, dentro de um tempo pulsado – um tempo medido. Quando ela, como disse acima, busca instaurar o tempo das pulsões – de modo que o bailarino/bailarina possa acessar os impulsos corporais. Como fazer que esses dois planos, o pulsado (medido) e o não pulsado, coexistam num só corpo em criação?

De fato, ali estão os corpos – corpos jovens, treinados no caminho da virtuose em dança, mas também corpos de paixão, de vida, de sentimento. Toda uma potência de vida à espera da expressão, mas igualmente toda uma potência de vida em expressão. Mas como esse material, para pensar de novo com Deleuze, pode fazer audíveis as forças não audíveis por si mesmas?

Foto: Andre Semenza

Observo que Fernanda Lippi se cerca não só de seu conhecimento técnico/coreográfico de dança, mas se assessora, como nos disse no debate sobre o filme Memória Silenciosa, com a contribuição da parceira Sarah Storer, para criar as conexões entre impulso/vida pulsional e estruturas métricas de base coreográfica que estão (in)corporadas como domínio dos bailarinos e bailarinas. Pois, afinal, esse plano também traz suas potências e nele também – porque não? – as forças não audíveis por si mesmas possam se fazer audíveis.

Foto: Andre Semenza

Poderia dizer: Fernanda Lippi buscou fazer a ponte entre o conhecido e manipulável tecnicamente por cada corpo e o desconhecido e novo com o qual este se depara, seu abismo íntimo, diria – a fim de que emerja esse outro em si. Diria ainda que Fernanda transita dos estudos que realizou inspirados/exercitados em Jerzy Grotowski (1933-1999 – teatrólogo que abandona o mundo do espetáculo, no auge de seu sucesso internacional, para buscar, em vários momentos distintos, mas que, no entanto, têm por linha de força a busca da organicidade dos impulsos corporais). Sem falar ainda das técnicas de Laban, que fazem parte das pesquisas de Fernanda.

O que pode, portanto, criar essa abstração viva de corpos, de seres que não sabemos se estão vivos ou mortos. Um mundo de fantasmas encarnados. Famintos de amor e de vida. Que nos convidam a visitar nossos próprios abismos – esse outro em si.

Mais informações:

– Andre Semenza é diretor artístico do Zikzira Teatro Físico, diretor da Maverick Motinon Ltd, nascido em Zurique, na Suíça. Estudou na London International Film School e no Drama Studio London. Em 1999, fundou em Londres, com Fernanda Lippi, o Zikzira Physical Theater, com sede em Belo Horizonte (Zikzira Action Space).
– Fernanda Lippi é coreógrafa, diplomada em Dança-Teatro pelo Laban Centre London, sendo professora convidada no The Place em Londres, para pós-graduados em dança para cinema.

– Ficha Técnica

Elenco:
Josué Maciel, Maira Campos, Cristhyan Pimentel, Diogo Gonçalves, Mirela França, Morvan Teixeira, Mariana Rodrigues, Amanda Soares, Luiza Viana, Ana Silva, Kaio Fernando, Leonardo Bruno Rodrigues, Clarissa Moura, Camila Gomes, Isaias Estevam.
Coreografia: Fernanda Lippi
Direção: Andre Semenza, Fernanda Lippi
Assistente de coreografia: Sarah Storer
Câmera, montagem e edição de trilha sonora: Andre Semenza
Desenho de luz: Guilherme Bonfanti
Figurino: Philmore Clague
Assistente de câmera: Gilmar Salustriano
Produtora: Maverick Motion Brasil Ltda

Coordenação artística: Priscila Fiorini (Cia Sesc de Dança)

 

Por Luiz Carlos Garrocho

Professor, pesquisador, diretor de teatro e filósofo.

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