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Teatro pós-dramático e performativo

O teatro de Tadeusz Kantor (1)

A realidade do nível mais baixo

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Origem: http://www.zwoje-scrolls.com/zwoje20/text12p.htm

Tadeusz Kantor (1915-1990), um artista de happenings, esculturas, desenhos e teatro,  publicou inúmeros manifestos poéticos que se tornaram, por sua vez, outras criações. Não são espelhamentos ou identidades entre textos e performances,  e sim um jogo de afecções mútuas.  Tomemos uma definição do próprio Kantor para  seu teatro: a realidade do nível mais baixo. Uma expressão emblemática de sua arte, que pode ser mais bem compreendida a partir de três questões:

a) a crítica da ilusão teatral (e do teatro-representação);

b) a arte moderna, a abstração e o desaparecimento do objeto e da figura humana;

c) a crítica de Gordon Graig, um dos renovadores do teatro, que considerava inferior a arte do ator vigente na sua época,  por  estar presa à emotividade. Diferente de outras artes (música, artes plásticas),  a matéria  da interpretação teatral consistiria na própria existência pessoal do artista, sujeita ao movimento das paixões  e, portanto, sem as definições ascendentes da beleza que se igualaria à precisão.  Na sua visão, o ator deveria ser uma supermarionete.

Kantor responderá a esse contexto justamente com a realidade do nível mais baixo. Vejamos:  

a) rechaça o “objeto artístico” (assim como o fez Duchamp, com o qual trocou correspondências) e a inerente “ficção de realidade”, na década de 1940, em meio à intervenção e ocupação nazista, criações cênicas em lugares que não o palco ou que se destinassem oficialmente às artes.  Postulava “o lugar real, não isolado da vida”. Sendo uma pessoa que viveu os períodos da Primeira à Segunda Grande Guerra, Kantor buscava  a realidade concreta dos lugares destruídos, assim como aqueles que se encontram desgastados, como espaços marcados pelo tempo: como uma pobre sala de aula, um hospício e outros. Para depois se apresentar nos edifícios teatrais, usando o palco para expor o pensamento de uma cena que se constrói diante do espectador;

b) retoma o objeto na arte, não mais como imitação artística, mas como um objeto miserável, que sofreu a ação do tempo, que possui uma inscrição da memória na sua superfície e sobre o qual ele intervém, criando máquinas cênicas e sonoras (um berço de madeira que se movimenta e faz um som que parece um ressoar de pedras);

c) coloca os manequins em cena. Porém, não com o objetivo de substituir o ator vivo, mas com o objetivo de realizar uma “dupla operação”: o manequim torna-se a expressão da morte para o ator vivo, enquanto os corpos dos atores  reaparecem como mortos e/ou como manequins, de modo que confundimos uns com os outros.

Vejamos como essas três linhas de expressão perfazem a obra e os manifestos de Kantor, tomando por condução o tempo-repetição, o objeto e o ator, a fim de pensar esta realidade do nível mais baixo.

A obra de Kantor, como a definiu Hans-Thies Lehmann ( 2007),  é uma poesia da catástrofe humana. Nesta postagem, considero dois espetáculos que foram filmados para a TV, que são a Classe mortaOs artistas devem morrer, além de alguns textos sobre e do próprio Kantor, entre outras fontes de pensamento.

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Que morram os artistas!

Uma poética do anti-heroísmo

Kantor expôs a vulnerabilidade  da vida e da arte,  sublinhando o traço patético do heroísmo. Numa alocução, perante o Júri internacional que lhe outorgou o Prêmio Rembrandt da Fundação Goethe, Kantor, mais uma vez, colocou-se no espaço e no tempo do desaparecimento de si, do abalo terrificante das forças singulares que irrompem na criação:

“Permitam-me, Supremos Juízes

apresentar-vos meu credo solene,

meu desafio e minha provocação.  Permito-me

recordar-vos que o método fundamental (se posso

exprimir-me de maneira tão patética) de meu trabalho é e era

a fascinação pela realidade que denominei REALIDADE DO

NÍVEL MAIS BAIXO.  É ela que explica meus quadros,

minhas Embalagens, meus Objetos Pobres e também meus Personagens

Pobres,

os quais como vários filhos pródigos, retornam na

miséria a suas casas natais.” (…)

Nessa alocução, Kantor na verdade performa,   aplicando a si mesmo esse método: o encontro com o medo “diante do mundo exterior, o medo diante de nosso destino, diante da morte, diante do desconhecido…” E proclama, na contramão da crença moderna,  que “não é verdade que o artista é um herói ou um conquistador audacioso e intrépido como o quer uma LEGENDA convencional…” E dá o veredicto: “Acreditai em mim, é um HOMEM POBRE, sem armas e sem defesa, que escolheu seu LUGAR face a face com o MEDO”.

tadeusz_rolkerutura temporal da repetição

Hans Thies Lehmann, na sua análise dos elementos pós-dramáticos do Teatro de Kantor, fala da “forma quase ritual de evocação do passado”, produzindo uma “estrutura temporal da repetição”. O que nos remete à questão da sucessão temporal na cena.

Diria que que um teatro – no sentido expandido da palavra –  define-se antes pelo modo como se desenvolve no tempo e no espaço, isto é, como a sucessão se organiza. Porém, esta não é um dado natural da percepção ou dos sentidos. É  um hábito. Bergson fala justamente da relação do hábito com a montagem do nosso aparelho sensório-motor. O filósofo Claudio Ulpiano descrevia assim o pensamento bergsoniano:

“O esquema sensório motor nos traz o mundo dos nossos hábitos, congelado por nossos hábitos, onde só percebemos o que nos interessa. E o que nos interessa é determinado não só por nosso gosto pessoal, mas pelos hábitos, costumes e regras nos quais se inscreve a nossa descrição de mundo. A descrição é a elaboração de um inventário que fazemos ao longo de nossas vidas, através do qual organizamos o mundo que nos cerca.” (ULPIANO, 2009).

Esse é um dos elementos da filosofia de Bergson que Gilles Deleuze (1985, 2005) irá trabalhar nas suas obras Cinema: a imagem-movimentoCinema: a imagem-tempo. O que está no cerne dessa filosofia é que a percepção não é uma representação, mas uma ação. Ela movimenta-se para os objetos que, nessa correspondência, por assim dizer, mostram-nos sua face útil. Em termos de montagem de uma sucessão, temos que uma percepção gera uma ação que por sua vez gera outra percepção. Vejamos assim: imagine você diante desta tela, lendo este pequeno ensaio, quando escuta passos atrás de si, em algum lugar ou cômodo. Num esquema sensório-motor, a minha percepção (escutar passos) produz uma ação no meu organismo: eu sinto medo, eu resolvo olhar para trás… Mas imaginemos que não era nada. Volto a escrever. De repente, os passos aumentam. Talvez você  resolva levantar-se, com batimentos cardíacos etc. Agora, vamos interromper o esquema sensório-motor, produzindo um colapso nos seus encadeamentos vinculantes: você escuta passos,  levanta-se da cadeira, deita-se na mesa e canta uma cantiga de ninar, enquanto isso os passos continuam… Nessa última montagem, a sequência pode ser descrita, potencialmente, como: uma percepção que gera uma percepção, que gera outra percepção… O que ocorreu? No primeiro caso, havia uma causalidade, sendo que a sucessão segunda (olhar para trás) já estava prevista na primeira (escutar passos). No segundo caso, rompe-se o encadeamento sensório-motor: a percepção não gera uma ação (resposta do organismo ao estímulo em termos causais e de significação), antes produzindo um lapso, um hiato, uma suspensão.

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Cenário de Que morram os artistas!

No teatro dramático, a sucessão pode ser entendida a partir do esquema sensório-motor, elemento básico, também, do cinema clássico.  Agora, voltando à análise de Lehmann, este mostra que o teatro de Kantor  não apresenta o curso de ação contínua, própria do drama. A montagem   se dá por meio de quadros, nos quais os personagens perdem quaisquer possibilidades de se realizarem como tais. Eles não têm um destino, que é o elemento fundante do drama, segundo Susanne Langer ( ).  Na construção dramática, há uma  abstração do ato: este emerge do passado em direção ao futuro, alimentando no espectador a ideia de um todo em desenvolvimento.

O que encontramos no teatro pós-dramático de Kantor é uma reiteração de imagens que se repetem sem conflito e resolução, que são elementos dramáticos. O ator caracterizado com vestimenta militar que entra logo na primeira cena de Que morram os artistas, sai, fecha a porta e depois volta chamando para dentro um conjunto de outros seres. Houve o fim de um quadro e a criação de outro, sem nexo causal. E o ato de chamar pode fazer parte  das tarefas desempenhadas por essa figura: a de evocar, de trazer para a cena  uma imagem-ritual.  A função dessa nova cena será completamente autônoma em relação àquela que a precede como também em relação a que a sucede. Ocorre, então,  que o conjunto, ou todo, passa a variar infinitamente em vez de configurar-se como um todo fechado.  A sucessão, assim organizada, é um todo aberto e não leva a um desenvolvimento dramático, antes desrealiza personagens e  produz  cortes a-significantes no fluxo material e expressivo da criação. De fato, a cena avança para uma direção e, como me disse uma vez o performer Ricardo Aleixo, ritmo é o vetor de um movimento. Porém, esse avanço não opera a dialética de um presente que se refere a um passado projetando-se num futuro, mas sim ao crescendo de um delírio cênico, de uma paisagem em transformação contínua. Trata-se do uso do leitmotiv, do motivo que retorna, mas sempre através de uma diferença, seja no tema musical, seja na pura repetição de ações ou cenas.

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O ritmo e o tempo ainda constituem uma via de precisão em Kantor. Em A classe morta, os gestos e as ações dos performadores são construídos com  precisão corporal, o mesmo ocorrendo em Que morram os artistas! Ao contrário do que pode parecer no caos que sempre se instala na cena, nenhum gesto é feito com base na emoção ou no sentimento (a volta de Graig com a supermarionete?).  Há uma coreografia de gestos e movimentos musicalmente precisa (veja uma sequência de trechos de A Classe Morta no Youtube). Porém, não como uma contagem imposta, mas na modalidade de um cálculo do performer sobre o seu próprio jogo. Algumas pessoas, principalmente do movimento de dança contemporânea, me perguntam como defino a precisão. Para mim, ela é o intervalo de uma velocidade. Ou a condição de rigor do artista, que é sinônimo de crueldade.

Um dos exemplos marcantes disso é uma demonstração que o próprio Kantor realiza ao dobrar um lenço branco, não nos dois espetáculos citados, mas em outra criação.  Ele o faz com uma precisão absoluta de tempos e ritmos. Não se deve confundir isso com a determinação pontual sobre os fluxos, mas  como o desdobrar de paisagens, uma após outras, que Kantor realiza ao dobrar o lençol. E o que ele demonstra, acima de tudo,  é o extremo cuidado com o objeto, com o qual o ator  coloca-se, cenicamente, em pé de igualdade.

Como vimos, uma característica essencial de teatro de Kantor é a volta do objeto. Porém, a volta de um objeto pobre, miserável. Para se contrapor à cena da abstração em arte, Kantor diz que podemos imaginar a entrada de “um homem nu que… carrega uma cadeira…”   Kantor diz que a volta do objeto.

“Não é o retorno de um degredo.

Não é também a derrota da
abstração, como nos poderiam fazer acreditar os primeiros discípulos do realismo.

UM OBJETO
DIFERENTE APARECE/ Não este ao qual o artista ofereceu

Suas habilidades imitando-o
fielmente em sua pintura. Aparece um objeto ARRANCADO DA REALIDADE DA VIDA,
SUBTRAÍDO DE SUA FUNÇÃO VITAL, QUE MASCARAVA

SUA ESSÊNCIA, SUA
OBJETIVIDADE.

Um puro objeto.

Alguém poderia dizer um OBJETO ABSTRATO.

e além
disso

era um POBRE objeto incapaz de realizar qualquer função na vida,

um objeto para ser
descartado.

Um objeto para ser das funções vitais que poderiam salvá-lo.

Um objeto que está
despido, sem função artística!

Um objeto que poderia evocar piedade e afecção.

Este era um
objeto completamente diferente dos outros objetos

…uma cadeira de cozinha.

Um objeto, que
estava completamente esquecido de suas funções vitais, emergiu pela primeira vez na história.

O objeto estava vazio.

Ele tinha que justificar sua existência mais para si mesmo do que para as
circunstâncias estranhas a ele.

[E ao fazer isso, o objeto] revelou sua própria existência”.

O teatro dramático tem por base a centralidade da figura do ator.  Contrário disso, no teatro pós-dramático e performativo de Tadeusz Kantor, o ator é tanto um ator-objeto quanto o objeto é um objeto-ator. Obviamente que os objetos e a encenação dependem do ator, mas este deixa de sobrepor-lhes sua presença, assim como o jogo cênico deixa de ser conduzido pelo vínculo interno entre personagem e lugar.

Kantor também produz objetos cênicos, mas sempre a partir de materiais desgastados pelo tempo. Em A Classe morta, além dos bancos escolares, dos livros empoeirados, do cubículo utilizado como latrina, ele mostra uma espécie de mesa de parto que é também um instrumento de tortura, completamente desfigurado (duas tábuas que se abrem com as pernas), e um berço de madeira que oscila mecanicamente com bolas dentro, produzindo uma instalação sonora.

Além disso, o próprio Kantor sempre está em cena. (veja no Youtube  trechos de A classe morta, numa versão de 1977, quando ele dirige como maestro os atores em cena). Tanto como os outros, é um pobre e miserável ser-objeto. E no caso do ator, num de seus manifestos, Kantor se expressa assim:

O ator:

O t e a t r o – continuo a insistir – é o l u g a r

q u e  r e v e l a, como um

s e g r e d o  g u a r d a d o  n o r i o, as armas da ‘passagem’ ‘da outra margem’ para a nossa vida.

Diante dos olhos do espectador se apresenta o ATOR que assume a condição do MORTO.

O espetáculo, com seu caráter de rito e cerimônia, se torna um c h o q u e .

E eu o chamarei, com muito prazer, m e t a f í s i c o.

A encenação de Kantor é um fluxo de imagens em movimento, como afirma Lehmann. Ou, como prefiro dizer, a partir de Deleuze e Guattari, um fluxo material e expressivo numa sintaxe disjuntiva. O que vemos é uma mise-en-scène de objetos, música, tempos, atores e espaços.

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Referências, bibliografia e vídeos

DELEUZE, Gilles. Cinema 1: a imagem-movimento. Tradução de Stella Senra. São Paulo: Brasiliense, 1985.

DELEUZE, Gilles. Cinema 2: a imagem-tempo. Tradução de Heloísa Araújo Ribeiro e revisão filosófica de Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 2005.

KOBIALKA, Michal. A Journey trough other spaces. Essays and manifestos, 1944-1990 – Tadeusz Kantor. Berkeley, Los Angeles, London: University of California Press, 1993.

LANGER, Susanne. Sentimento e forma. Perspectiva: São Paulo, 1980.

LEHMANN, Hans-thies. Teatro pós-dramático. Sãp Paulo: Cosac & Naif, 2007.

Site do Teatro Fábrica São Paulo

Teatro Contemporâneo/Tadeusz Kantor  (texto de Cristina Tolentino) – in Caleidoscópio

ULPIANO, Cláudio.  http://www.claudioulpiano.org.br/textos_texto01.html

Vídeos – (pequenos trechos)

– A Classe Morta (versão de 1977) –

httpv://www.youtube.com/watch?v=ldgYYqpPv1g&feature=related

– A Classe Morta (a última versão) –

– Tadeuz Kantor: Teatro de Vanguarda –

httpv://www.youtube.com/watch?v=VA8LqLx47Y8&feature=related

Por Luiz Carlos Garrocho

Professor, pesquisador, diretor de teatro e filósofo.

10 respostas em “O teatro de Tadeusz Kantor (1)”

Luciano,

Agradeço sua visita. Minha dissertação de mestrado aborda, num dos capítulos(item 2.3 pg. 134), uma pesquisa envolvendo ator e objeto. Clique aqui para ir ao Banco de Teses da UFMG e acessar a dissertação “Cartografias de uma improvisação física e experimental”.

Abraços e volte sempre.

Ranniery

Fico feliz pela sua visita.
Aguardo notícias de suas pesquisas. Que sejam bons encontros.

Abraços

Olá, Garrocho. Gosteria de primeiro parabenizar pelos blogs. Execelentes trabalhos.
Acabei descobrindo o Teatro Pós-Dramático e o Estudos da Performance durante as pesquisas para meu trabalho monográfico. Eu e um grupo de amigos estamos estudando independetemente esses campos.
Tentarei sempre acompanhar teu blog, tuas pesquisas e pensamentos, quase como movimentos, são como inspirações, afectos e perceptos, se seguirmos Deleuze.Muito obrigado.

um grande abraço

Olá Garrocho, que ótimo que encontrei você nesses dois blogs excelentes! espero encontrá-lo também mais vezes por aí.

Luciana,

Gostei de ver, no Encontro de Criadores e Coreógrafos de Pirenópolis, a exposição sobre o seu trabalho coreográfico com a sua Cia Anti Status Quo, de Brasília. O melhor, no entanto, é assistir a um espetáculo. Preciso ir a Brasília, desta vez com calma. Além disso, tem o Fernando Villar aí e muitas outras coisas interessantes. Vi o blog do Núcleo de Formação, desenvolvido por você e seu grupo: http://nucleodeformacaoasq.blogspot.com/ . Você tem muito material (de treinamento e criação) para compartilhar. Um pensamento coreográfico, cênico e também de pesquisa do movimento.

Quanto a Tadeus Kantor, este é uma fonte inesgotável. Sempre que volto a ele, vejo o que não havia visto antes. Imitar sua estética não tem sentido, mas ser provocado por ela sim.

Abraços

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