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Migrações de Tennessee

Tennessee
Imagem: Guto Muniz

Migrações de Tennessee é um tributo de Eid Ribeiro ao grande dramaturgo que escreveu, entre outras peças, Um Bonde Chamado Desejo e À Margem da Vida.

Ele expõe na personagem de Tennessee Willians em cena (Cristiano Peixoto), um pouco da história e dos motivos que são recorrentes ao autor. Porém, mais do que isso, Eid Ribeiro mostra também os traços que marcam sua trajetória de encenador – e também de dramaturgo que é. Mesmo que não sejam tão evidentes, pois que entrelaçados estão a outros intercessores e influências.

Os detalhes na construção dos seres ficcionais são de uma preciosidade ímpar. Quase um minimalismo dramático – por onde as personas escapam pelas frestas, a serem apanhadas logo em seguida no patético do acontecimento (o convidado para o jantar, quando acovardado, se revela num átimo, batendo o pente na parede e quase olhando para trás).

Eid Ribeiro entretece o seu fazer, nas dobras do acontecimento, através do que ele sempre chamou de nuances – que nós entendemos por detalhes. Que a arte é detalhe dentro de detalhe. Nuance de nuances.

Os atuantes Cristiano, Fábio Furtado, Camila Moreno e Juliana Martins se esmeram com acuidade nessa maestria que Eid exige.

Pois exigência de maestria é a palavra que melhor define tanto a própria carpintaria cênica de Eid quanto do que ele quer das atrizes e dos atores.

É quase como esculpir a fumaça que se exala de uma tragada de cigarro: é tênue, é quase intangível, é efêmero, mas deve ser desenhada com precisão. Os personagens de Eid são prestidigitadores baratos, mas sempre elevados à categoria de configurar universos. No caso, ele recorre aos personagens de Tennessee.

Ou dito de outro modo, essa maestria tem a ver com aquilo que Dario Fo fala do ofício do ator: que ele, como um bom nadador, não jogue água fora da piscina quando atua.

É uma arte da contenção – de conter o incontido.

 Num tempo em que muitas vezes a autoexpressão como narrativa- tão imperiosa nesse mundo que tem por Facebook (folha de rosto) a marca maior das relações sociais – a exigência de Eid vai na contramão de quase tudo.

Não se confunda com classicismo. Apesar do clássico que é Tennessee Willians. Pelo contrário, nas camadas subsequentes à essa exigência de encarnação precisa de seres ficcionais, encontram-se outras formas radicais, mas sutis, de uma encenação contemporânea. Por exemplo, os atores/atrizes quase nunca falam entre si como se fosse uma conversação cotidiana. O plano lírico se interpõe ao dramático, exigindo que os atores/atrizes falem para o vazio – que não é o espectador (com exceção de Cristiano, que supõe uma plateia de entrevistadores, mas que não é de fato a plateia existente). Ou no momento em que o convidado para o jantar dança com a irmã de Tennessee. É quase um cubismo de composições corporais. Ou no recurso das falas ao microfone, num plano de cinema (de contracampo), em diálogo com a atriz/ator na cena.

Há exceções em que esse plano rigoroso não me parece ser seguido à risca (a entrada das moças contratadas pelo homossexual para seduzir o marinheiro). É toda uma atmosfera que oscila entre a lentidão (própria de Eid, como fenda da duração,  que tanto curto), junto com a leveza nostálgica que a trilha musical às vezes nos revela com as mudanças de ambiente.

Algumas cenas revelam todo o primor da composição. A irmã delirante do dramaturgo, imersa num mundo de vidros, é talhada com uma quietude extenuante, por parte de Juliana Martins. Camila Morena, coma prostituta decadente, expõe as pétalas de carne já quase putrefatas dessa personagem que busca no fundo da lembrança o amor. Fábio Furtado mostra em dois personagens uma entrega e uma maestria que desenham em detalhes o ser de ficção (o convidado para o jantar e o homossexual de bom gosto e moda). Cristiano nos conduz, como Tennessee, também num plano bem desenhado pelos motivos (que são tão musicais quanto imagéticos) do universo em pauta – lembrando ainda do marinheiro que executa, na contracena com Fábio Furtado.

Mais uma vez, Eid Ribeiro demonstra sua paixão pelos tipos, mas sem abrir mão das almas que migram pelos corpos em delírio. A obra de Tennessee é uma oportunidade que Eid escolheu para realizar quase que um ajuste contas. Com um autor que não me parece ter sido explicitamente presente nas peças que montou – mas que estava lá, sempre, olhando-o entre as frestas das cortinas, das portas ou do fundo escuro da noite.

Referências

Tenesse – Direção e dramaturgia de Eid Ribeiro. Atuação: Camila Morena, Cristiano Peixoto, Fábio Furtado e Juliana Martins. Figurino Wanda Sgarbi. Assessoria de movimento: Lydia Del Picchia. Coreografia: Morgana Mafra. Colaboração de Dramaturgia: Sara Pinheiro. Trilha Sonora: Eid Ribeiro. Iluminação: Felipe Cosse e Juliano Coelho. Belo Horizonte, 2015 e 2016.

Por Luiz Carlos Garrocho

Professor, pesquisador, diretor de teatro e filósofo.

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