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Performance Teatro experimental

Danças do Abismo

marcelo
Imagem que faz parte do vídeo exibido (Marcelo Gabriel/Arthur B. Senra).

Assistir a uma cena de Marcelo Gabriel é sempre uma experiência singular – quase um privilégio. Primeiramente porque o artista somente se apresenta uma vez ao ano na própria cidade em que reside, Belo Horizonte (MG). Depois – e o mais importante – porque estamos diante e junto de uma poética do corpo que vem, ao longo dos anos, adentrando nos próprios abismos.

O título Danças do Abismo 2, então, não poderia ser melhor para expressar o que se seguirá. Aqui nos deparamos com um trabalho despojado, tanto em relação ao figurino, quanto à cenografia, no qual Marcelo Gabriel experimenta o limiar que perpassa morte e loucura. 

Marcelo Gabriel criou sua Companha de Dança Burra, fundada no ano de 1987. Com o tempo, Marcelo abandona as parcerias e passa a se expor sozinho em cena. Lembro-me da cena que foi Cela de Ossos, em que ele pesquisava a vida dos prisioneiros comuns – dos condenados pela justiça. Um momento até hoje me marca: com uma camiseta branca e larga, seu corpo cada vez mais tatuado, a cabeça raspada (como sempre), sapatos de salto alto vermelho, Marcelo seguia num corredor de luz (literalmente traçado pelo refletor, mas também pela linha que ele demarcava no movimento). Jogo ambíguo, de um macho-fêmea que ao mesmo tempo se entrega e ameaça.

A guinada espiritual e ao mesmo tempo cada vez mais inspirada no Butô tem sido a tônica dos últimos trabalhos – principalmente deste.

Se antes, quando jovem, Marcelo se atirava ao chão, expunha uma corporeidade de risco (nos momentos de parceria com Adriana Banana principalmente), fazendo críticas ao establischment, ao mainstream das artes (principalmente à dança), ao consumo do corpo nas nossas sociedades de mercado, numa tônica pop, agora ele se despoja e se lança num abismo de espinhos.

Um monge louco de olhos vazados.

Destaco dois momentos sublimes. Um deles, em que ele passa do horror abissal à idiotia – do rigor ao riso puro. Mas veja só, não se trata de uma idiotia codificada. Mas sim daquela que é atravessada por forças estranhas, que o humano, definido como padrão de sentimento e percepção, não comporta e não mais consegue sinalizar. Quase criança, ser ao vento – entregue ao acontecimento.

Outro momento maravilhoso é aquele em que Marcelo, numa ação vibratória, gesticula com os braços e mãos e temos a sensação de que ele está envolto em dezenas de borboletas esvoaçantes.

O que me espanta, contudo, é ver que esse caminho e trajetória – agônico/solitário/abismal – na busca de um Teatro Físico, não encontra ressonâncias numa cidade de tantas criações e artistas jovens como Belo Horizonte. Esse é um assunto que pede uma atenção especial. Registro apenas que gostaria de que esse trabalho pudesse ser mais exposto e compartilhado.

Por fim, o despojamento espiritual de Marcelo Gabriel me leva, ainda, a considerar que essa cena não pode ficar sem recursos de investimento e de parcerias (artísticas e institucionais) que possam incrementar suas potências. Os dois vídeos exibidos, com Marcelo dançando no ambiente das montanhas, é um bom exemplo dessas forças que se agregam à cena.

Entretanto, observo que não houve, dessa vez, qualquer apoio de Leis de Incentivo. Independente disso, penso que a concepção cenográfica, entre outros elementos (como a luz por exemplo), pede atenção. O palco dos teatros convencionais nunca é neutro – por mais despojado que seja, ele se impõe e por vezes retém a poética em curso.

Saio daquele espaço com a sensação de ter me deparado com a beleza e singularidade do acontecimento, que é a cena de Danças dos Abismo 2, e a constatação de que essa poética do corpo deve ser objeto de estudo por parte dos jovens artistas. Mais ainda quando praticamente domina, nesta cidade, o teatro voltado ao texto. O mesmo diria para a dança, que precisa ver o que se passa ali, ao seu lado.

Ficha técnica

Direção geral, encenação, concepção/coreografia, dramaturgia, iluminação, vídeos e figurino: Marcelo Gabriel.

Assistente de direção e pesquisa histórica: Carmen Diniz

Trilha sonora (criação, execução): Marcelo Gabriel, André Cabelo, Ricardo Frei.

Fotografia: Guto Muniz, Daniel Mansur

Vídeos: Marcelo Gabriel e Daniel Mansur

Belo Horizonte – novembro de 2015.

Por Luiz Carlos Garrocho

Professor, pesquisador, diretor de teatro e filósofo.

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