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A Projetista: uma política do desejo

Quando é que um corpo-artista realiza um encontro com a técnica, de tal modo que esta deixa de ser uma defesa diante da vida e de seu estado precário? E em que a polaridade “corpo” e “artista” desaparece ou não faz mais sentido?  Não porque tudo aquilo que nos ameaça, tendo por resposta um arcabouço qualquer, se dê necessariamente por vencido. Mas sim porque tais coisas passam a fazer parte do assombro de viver como jogo e signo. A Projetista, de Dudude, coreógrafa, bailarina, performadora e atriz, traduz isso.

Porém, não é  fácil dispor de si como signo, ao modo do abandono de si.  Pode até acontecer de repente, mas leva muito tempo. Tempo que também se perde, já que a vida escoa e os projetos não se transformam por si mesmos em encontros. Para lembrar Proust, citado por Dudude no espetáculo, diria com Deleuze que é preciso também perder tempo: 

 “Nunca se sabe como uma pessoa aprende; mas, de qualquer forma que aprenda, é sempre por intermédio de signos, perdendo tempo, e não pela assimilação de conteúdos objetivos”.

Talvez, seja essa uma das chaves de leitura de A Projetista. De um lado, o tempo perdido na elaboração de um amanhã como alvo. Que é a negação do presente vivido. E o tempo que se perde no embrenhar-se da vida aos acasos. A necessidade, portanto, de ir em busca do tempo perdido.

Dudude faz da elaboração desse amanhã capturado pela burocracia, assim como desse perder-se necessário na vida, um experimento criativo. Coloca, no próprio espetáculo, o desejo de dançar uma pergunta, ou de prolongar uma fresta lançada, muitas vezes, pela própria estupidez do ato projetista. Que se transforma assim em gesto, palavra, imagem. Então, amanhã é agora.

Nossos hábitos podem nos fazer acreditar que A Projetista é um misto de teatro, de dança, depoimento pessoal, crítica e denúncia. Porém, isso não tem a menor importância, pois, como em outros processos criativos, não podemos continuar a pensar por meios que não sejam o de uma arte no campo expandido.

A Projetista é um espetáculo, mas é também uma performance.  No sentido de uma poética que chama a si as forças. Que forças são essas? Aquelas que sustentam um corpo no ato de convidar outros corpos a compartilhar essa mútua presença. Nesse sentido, não é a representação de uma “situação” ficcional a linha de condução. O que conduz o jogo performativo é o embate. Uma estratégia de conhecimento no ato mesmo da encenação.

Portanto, o que vemos não é a história ou a fábula de uma personagem, de uma “projetista”. Sim, há também esse plano ou camada de composição e leitura. Porém, ele não se configura a ponto de ser uma matriz do evento. Constitui uma esfera de problemas, de cartas ou de dados lançados. Que pedem respostas, enfrentamentos. São elementos de enunciação, ao lado de outros, como os momentos em que Dudude dança. Ou aqueles em que ela se permite emocionar com o que diz.  É nesse campo que as coisas se resolvem – no ato de dançar como necessidade e desejo.

Há linhas e planos. Como a denúncia desta época em que, como Dudude diz, será lembrada uma dia como a “era dos projetos”.  As pessoas “ficavam lançando projetos para o futuro”. Sim, Dudude aponta para o impasse das políticas públicas, contudo, sem colocar-se no lugar do queixume, com é tão comum. E num momento muito forte ela diz algo assim: por que eu devo detalhar aquilo que eu não sei o que será, como é toda criação?

Nem por isso precisamos nos tornar tristes por causa da política. Pelo contrário, Dudude faz do evento cênico o acontecimento de uma política do desejo. Não pela reivindicação de uma particularidade (o “eu” da artista) ou de uma generalidade (“os artistas”, “o humano”). Mas sim no acolhimento dessa experiência do fora, de que fala Blanchot. E da alteridade de nossa situação no mundo.

Porém, a despeito de denunciar a burocracia  das leis de incentivo e os agenciamentos que elas produzem (como o ficar à espera de uma condição externa favorável, ou de vincular o desejo ao “projeto” e, por tabela, ao Estado), A Projetista expõe os caminhos de nossas fragilidades e apostas.

Uma das sequências mais belas é a que Dudude dança, já no final do espetáculo. Uma dança da ordem da intensidade, na qual se dá um entrega e em que um corpo somente se identifica com sua própria variação. Por sua capacidade de sofrer as consequências de suas próprias ações.

Uma bela composição. O tempo reencontrado no desejo.

 

Referências –

 

– A Projetista: Concepção/intérprete: Dudude. Direção: Cristiane Paoli Quito. Assistência de direção: Lydia Del Picchia. Figurino: Marco Paulo Rolla. Trilha sonora: natalia Mallo e Danilo Penteado. Desenho de luz: Bruno Cerezoli. Vídeos: Joacélio Batista & Frederico Herrmann. Produção: Ludmila Ramalho.

DELEUZE, Gilles. Proust e os signos. Tradução de Antonio Piquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.

 

Por Luiz Carlos Garrocho

Professor, pesquisador, diretor de teatro e filósofo.

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