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A poética corporal de Rasante

rasante
Imagem: Guto Muniz: http://www.focoincena.com.br/

(ra.san.te)

1. Que passa muito próximo do solo.

2. Diz-se de fortificação cujos muros são baixos.

3. Diz-se de tiro disparado mais ou menos rente ao solo.

4. Voo rasante (1).

[F.: rasar + -nte.]

Dicionário Aulete

 

Rasante me traz sensações e, ao mesmo tempo, elementos fecundos para a pesquisa de linguagem – de um teatro de imagens produzidas pelos corpos, de uma dança intensiva e da constituição de atmosferas. Tem a direção do ator, bailarino e coreógrafo Sérgio Penna e a participação dele e dos atores-bailarinos-criadores Gabriella Christófaro, Bernardo Gondim, Lourenço Marques e Grace Passô.

A cena é classificada como dança. Tudo bem, isso serve para os editais, para os projetos de circulação etc. Na verdade, é inclassificável, como afinal toda arte que pode produzir afecções em você. E que por sua beleza – sim, o belo como força de deslocamento – também vai muito além dos gêneros artísticos. Tem uma poiesis do corpo – e dos meios que o atravessam e o tangenciam. São bailarinos-atores ou atores-bailarinos – tanto faz: cabe aqui essa descrição de Eugênio Barba.

Alguns planos me chamam logo a atenção. Um eles é da corporalidade, que Sérgio Penna desenvolve com extrema competência. Os corpos não estão, todos eles, imersos na mesma prática de origem. Quero dizer com isso que o grupo de atores-bailarinos não se dedicam aos mesmos parâmetros de treinamento, pesquisa e criação. Apesar de Sérgio ter trabalhado, em contextos diversos, com quase todos eles, senão com todos.

Isso é um elemento que poderia dificultar a construção cênica. Principalmente por se tratar de um trabalho que supõe, para cada um, a atitude compositiva e criadora.  O que não ocorreria em função dos possíveis condicionamentos externos, mas sim porque as formas de acessar a criação são diversas. Sérgio conseguiu que cada um gerasse a própria partida de apropriação do processo, porém, com a força do coletivo. Os corpos não se igualam, mas eles se modulam pelo contato, pelo jogo, pelas imagens em curso. E ao mesmo tempo conservam as singularidades.

Impressiona-me também a atmosfera criada, a partir das leituras que o grupo fez de Kafka. A espacialidade trabalhada é impactante, conjugada com a iluminação, produzindo zonas escuras e mais iluminadas, carregadas de densidade. Há, de início, uma escuta dos corpos que ali se dispõem diante de nós. A coreografia que eles desenvolvem tem duas funções: primeiramente a de produzir o meio – nos vários sentidos – e de, através dele, colocar os corpos em estado de escuta. A tarefa de um artista é sempre essa: inventar ou fabricar o próprio meio.

Quanto à escuta, outro dia eu tive a oportunidade de ouvir a coreógrafa, bailarina e professora do Cursos de Artes Cênicas da UFMG, Mônica Ribeiro, sobre o tema. Ela abordava dois regimes: o da visualidade e o da visão. O primeiro, é aquele que nos condiciona às todas as modalidades de visualidade. O segundo, é o que nos abre percepções outras. Como a dos estados corporais. Assim, em Rasante, esse primeiro movimento tem essa dupla função. Para nós, espectadores, o que se coloca é o plano da imagem. Para os atores-bailarinos, o plano da escuta que possibilitará os jogos e interações.

O plano corpóreo produz espaços. Uma dramaturgia de imagens visuais e sonoras se apresenta, então. A trilha, nesse aspecto, joga o tempo todo com as imagens e com os movimentos dos atores-bailarinos. Aliás, a sonoridade, um trabalho de criação do Grivo, merece  destaque: muito mais do que fundo, os sons atuam junto, dialogando com os movimentos, contribuindo para as afecções produzidas pela encenação.

Chamo a atenção também para o papel da situação nesse tipo de cena. Ela configura uma determinada constelação de crises e de jogo entre os corpos. Até o ponto em que se desfaz e surge, noutra ponta, outra situação. Para mim esclarece as características dessa dramaturgia de corpos, movimento, espaço, luz e sonoridades. No caso, a situação é definida pela interação entre os corpos: circunscreve o acontecimento cênico, aguça uma relação e cristaliza os vetores de tensão. Exemplo disso é o momento em que Lourenço Marques é cercado pelos parceiros de cena, acuado, constrangido, escapando para o teto, no qual se agarra a uma das partes da grelha de iluminação, quando é puxado de volta pelo grupo. Até o momento que isso leva a outra situação.

Esse clima de opressão perpassa toda a encenação. Parece que nenhum corpo escapa da lógica vigilante dos outros corpos. Tudo é conduzido pelas técnicas de contato (oriundas do contato-improvisação) entre os corpos. Mas essa atmosfera opressiva não resulta linear ou previsível, sendo antes uma linha que se insinua, às vezes misturada a um afeto. É opressivo estar juntos, respirar o mesmo ar.

O solo de Sérgio Penna é muito bonito. Um homem que se debate consigo mesmo. E que termina numa interação com outro parceiro. Para mim, um bom exemplo de jogo corporal que assume a consequência dos movimentos, num desenvolvimento que transforma o ator-bailarino. Há outras preciosidades: o jogo entre Gabriella Christófaro e Sérgio Penna, assim como os diálogos físicos entre Sérgio e Bernardo Gondim e entre Grace Passô e Lourenço Marques. A agonia do jogo corporal de Grace Passô proporciona imagens fortes, desse clima denso que Rasante explora. E mais um detalhe: Grace Passô, conhecida pelos trabalhos de dramaturgia, direção e atuação em teatro, mostra que todo corpo que pulsa é um corpo que dança.

Enfim, uma cena para assistir mais de uma vez. Não porque haja coisas para serem entendidas depois. Mas por três motivos: porque a fruição não se esgota na primeira vez, porque traz uma experiência única dessa zona sombria que instituímos no viver social, porque é um estudo primoroso para uma dramaturgia de corpos, imagens e sons.

Ficha ténica:

Sérgio Penna – diretor/bailarino. Gabriela Christófaro – bailarina. Lourenço Marques – bailarino. Bernardo Gondim – bailarino.
Grace Passô – bailarina. O Grivo – trilha sonora original. Wladimir Medeiros – iluminação. Gilda Quintão – figurino.
Lívia Arnaut – designer gráfico.. Guto Muniz – fotografia. Graziella Medrado – produção executiva.. Maria Clara Cheib – assistente de produção

Por Luiz Carlos Garrocho

Professor, pesquisador, diretor de teatro e filósofo.

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